Jesus o Bom Pastor

Jesus o Bom Pastor

15 outubro 2011

Biografias: Aziz Nacib Ab'Sáber


a biografia do Professor Aziz Ab'Sáber.
Leiam e reflitam nas lutas e conquistas desse grande Geógrafo!

Deliciem-se!
Foram apenas os dezessete primeiros anos de vida que separaram Aziz Nacib Ab’Sáber da Universidade de São Paulo, do vestibular à livre-docência ele nunca se desligou da USP. Nasceu e viveu em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, até os seis anos, quando sua família se mudou para Caçapava, onde freqüentou o primário.
Para cursar o ginásio, ia todos os dias a Taubaté, “recebi aulas de professores bons e de ruins, abri meus olhos para o mundo e para as diferenças”. Quando foi inaugurado o ginásio em Caçapava, Ab’Sáber passou a estudar lá, onde as aulas de história eram dadas pelos primeiros alunos formados em São Paulo na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH).
Aos 16 anos veio para São Paulo, “vim sozinho, com muito pouca coisa, para um lugar frio que não conhecia”, recorda o professor. Mudou-se para uma pensão, começou a se preparar para o vestibular e se alistou no serviço militar. O grande esforço o fez adoecer e abandonar a faculdade por três meses, o que gerou a mudança de sua família
para São Paulo.
Começou a ser aluno da FFLCH, em 1940, no terceiro andar da Escola Caetano de Campos, ao lado da Praça da República. O professor esclarece que sua entrada na USP foi
graças à prova de desenho exigida na época. “Não sei por que eu achei que faria aquele desenho melhor que os outros. Nunca esqueço disso, porque foi só o desenho, e não a cultura que fez a diferença.”A primeira atividade de Ab’Sáber como aluno da Universidade foi uma excursão que deixou São Paulo, passou por Sorocaba, Itu, Salto, Campinas e retornou a São Paulo. “Essa excursão foi definitiva na minha vida. Eu senti que iria me dar bem lendo a paisagem, e me decidi pela geografia.” Ainda hoje, Ab’Sáber faz essa excursão sucessivamente para estudar as cactáceas – plantas adaptadas a ambientes áridos – encontradas na região de Salto.Depois dessa viagem já sentia que não poderia ser historiador. O que confirmou sua preferência por geografia foi perceber que para trabalhar com história eram precisos muitos livros e ele não tinha dinheiro nem para os cadernos.“Eu só passei a comprar livros anos depois, quando tive possibilidade de dar aulas no curso secundário.”Aos sábados e domingos, Ab’Sáber pegava o bonde e ia até o ponto final, de onde partia sozinho para todas as direções de São Paulo. No futuro, os trabalhos sobre a região de São Paulo foram usados na preparação de sua tese de doutorado. “O curioso é que como comecei esse trabalho muito cedo, fica difícil acrescentar muita coisa a um outro que seja feito sobre ele.”
Toda essa trajetória só foi possível, porque o pai de Ab’Sáber, Nacib José Iunes, veio adolescente do Líbano e tornou-se mascate em São Luís do Paraitinga, visitando fazendas remanescentes do ciclo do café. “No meio dessa mascateação ele era muito querido e numa dessas viagens se encantou por uma pessoa muito simples, a minha mãe Justina.” O casal teve três meninos Aziz, Iusf e Luís. O geógrafo, pai de duas filhas, Janaína e Jussara, casou-se duas vezes e tem seis netos, todos com nomes indígenas, Iaci, Iandara, Cauê, Acauã, Iberê e Jassiara.


"Aziz filho de Nacib; Nacib da família Ab'Sáber", foi assim, com esse estranho nome composto, que o escrivão do cartório da bucólica São Luís do Paraitinga, no alto vale do Paraíba em São Paulo registraria em seus livros a chegada ao mundo no dia 24 de outubro de 1924 do menino que mais tarde ficaria conhecido como Aziz Ab'Sáber o mais respeitado geomorfologista nascido em solo brasileiro, filho de um pequeno comerciante libanês e de dona Juventina, uma brasileira de ascendência portuguesa oriunda do sertão florestal.

"Nasci no entremeio de um mar de morros", escreveu Aziz num poema da adolescência, em que já prenunciava a ciência que abraçaria e o estilo que costuma incendiar seu discurso. Em tom poético e fartamente descritivo ele discorre sobre o espaço físico brasileiro como se fizesse referência às linhas da própria mão. Foi pelas frestas de um jaca de bambu, onde certa vez se acomodou com os irmãos para descer a serra em lombo de burro, na direção do mar paulista, que Aziz Ab'Sáber começou a admirar a riquíssima e variada paisagem brasileira.

Como é que sua família veio parar no Brasil?

Meu pai era libanês e veio jovem para o Brasil buscar meu avô, um pequeno comerciante que estava morando em São Luís do Paraitinga (SP). Eles retornaram ao Líbano e, anos depois, em razão das lutas religiosas agressivas que já havia por lá e a conselho de minha avó, meu pai voltou para o Brasil. Aqui ele se casou com uma brasileira do sertão florestal, não do sertão seco. Minha mãe era muito ciumenta e nunca permitiu que se falasse árabe em casa. Portanto, apesar de eu ter um nome parecido com o de um xeque, não sei falar árabe.

Onde fez seus primeiros estudos?

Quando o terceiro dos três primeiros filhos completou seis anos, meu pai mudou-se para Caçapava (SP), uma cidade com mais infra-estrutura. Lá ele tinha uma lojinha e continuou fazendo o que a família sabia fazer. Nesse período, pela primeira vez, recebi uma educação formal. Indo para Caçapava, meu pai nos deu chance de seguir uma carreira. Fiz o curso primário no Grupo Escolar Rui Barbosa e aprendi a conviver com a competição. Pela primeira vez senti que as pessoas poderiam ser muito agressivas. Por ter um nome obviamente árabe, eu era chamado de "turquinho". Antes de entrar para a escola não havia tomado conhecimento desse tipo de coisa. Fiz o curso secundário no Ginásio Estadual de Caçapava. Aliás, todas as etapas de minha educação foram realizadas em escola pública.

Seu pai tinha formação escolar?

Não. Ele era de uma família que morava numa região de tradição agrícola, a leste de Beirute, onde toda a família se dedicava a atividades rurais. Meu pai foi o primeiro a se desgarrar, indo morar em Beirute. Ele tinha espírito aventureiro e gostava de viajar. Foi a Jerusalém sozinho quando moço e, depois, com apenas 15 anos, veio para o Brasil. Não teve condições de estudar. Mas, curioso, ele tinha uma característica que, penso, herdei dele: a vontade de conhecer mundos.

Mas ele se preocupava com a educação dos filhos, não?

O sonho dele é que os filhos pudessem estudar na França, um ambiente cultural com o qual seus primos tinham convivido. Quando ele veio para o Brasil, o navio parou em Gênova, na Itália, e não em Marselha. Isso foi uma decepção para ele, que queria conhecer um pedaço do solo francês. Meu pai sempre conviveu com a idéia de que eu, o mais velho, iria estudar na França.

Quando é que o senhor decidiu ir para a universidade?

Foi durante o curso secundário, influenciado por professores formados na primeira fase da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Alguns deles foram dar aula em Caçapava e eu pude sentir a diferença entre a formação desses professores e a dos mais velhos. Percebi a importância de uma boa formação, sobretudo na pessoa de um professor de história que estimo até hoje. Ele se chamava Hilton Friedericci, e ensinava uma história muito ligada à geografia humana, relacionada ao ambiente onde se desenvolviam os processos históricos. Em compensação, os professores de física, química e matemática não tinham boa formação ou não tinham didática. Os professores de história natural eram melhores. Gostava de física, apesar de considerar minha formação muito ruim. Parti então para o que eu gostava mais: história e geografia.

Com quantos anos o senhor entrou na faculdade?

Naquele tempo estava havendo uma mudança no ensino secundário. Eu havia feito apenas até o quinto ano, mas podia prestar o exame direto, sem fazer o Colégio Universitário, uma espécie de ponte entre o secundário e a universidade. Eu não tinha condições de enfrentar um exame cujos concorrentes tinham mais dois anos de estudos no Colégio Universitário, onde muitos professores eram da própria universidade ou ex-alunos recém-formados. Mas eu passei, acho que por causa de desenho, e com isso ganhei dois anos. Entrei na faculdade com 18 anos. Os exames eram muito difíceis. Para história e geografia, exigiam-se conhecimentos de história antiga e medieval, história contemporânea, história do Brasil, geografia do Brasil, geografia humana, geografia física, elementos de sociologia e desenho. Me saí mais ou menos bem em algumas dessas matérias. Não tinha conhecimento suficiente para ir bem em todas. Eu não viajava, estava circunscrito à área do Vale do Paraíba. Conhecia apenas Caçapava, Guaratinguetá e São Paulo. Fiz também uma viagem a Santos, quando vi o mar pela segunda vez. A primeira foi quando nos mudamos de São Luís do Paraitinga para Caçapava. Meu pai arrumou para descermos até Ubatuba, em despedida a São Luís. Era um período diferente. A serra, se descia a cavalo. Os meninos iam em jacas. Como eu era mais pesado do que meus dois irmãos, meu pai compensava a diferença de pesos com uma pedra. E chuva em cima até o fim da viagem! A estradinha era no meio da mata, um resto de estrada colonial em que se ia do planalto até o mar.

O senhor disse ter passado no exame por causa de desenho. O senhor tem habilidade nessa área?

Tenho. Ainda faço maquetes de relevo, blocos, diagramas. Mas não sou desenhista, sou apenas um esboçador de desenhos.

Parece que estudar é a coisa que o senhor sempre mais gostou de fazer, não?

Sim, eu não tinha outro objetivo na vida. Vim para São Paulo em 1940, sem ter feito o serviço militar. Mas tive que fazê-lo logo depois da preparação para os exames e entrei numa fase dura de treinamento. Pouco depois, em 41, tive uma infecção muito complicada. Se a minha família não tivesse vindo para São Paulo, eu teria morrido. Meus pais haviam perdido praticamente tudo antes de se mudarem, e o começo da vida da gente aqui foi um drama. Sou um sobrevivente desse tempo. Eu estava no primeiro ano da faculdade e fazia os primeiros meses do exército. Meu pessoal se instalou num bairro proletário, o Tatuapé, o único que meu pai conhecia. Foi um período muito difícil.

Não lhe parecia contraditório dedicar-se aos estudos quando havia tantas dificuldades financeiras na família?

Tive muitos problemas psicológicos por causa disso. Mas me dedicava profundamente aos estudos, pois sabia que a solução de muitos problemas da família dependia de mim. Eu adorava a universidade. Os primeiros cursos que fiz foram de altíssimo nível. Na área de humanas, estavam aqui os professores da missão francesa: Jean Gagé, de história, Pierre Monbeig, de geografia, entre outros. Brasileiro, havia o professor Aroldo de Azevedo, com quem mantive permanente contato. Cheguei a ser seu assistente e fiz toda minha carreira na disciplina de geografia do Brasil. Mas confesso que naquela época eu gostava mais de história. Ficava deslumbrado com as aulas de Jean Gagé. Ele era um medievalista famoso na Europa que veio para o Brasil como chefe da missão francesa em ciências humanas, substituindo Fernand Braudel. Braudel ficou pouco tempo; não tive a honra de acompanhar seus cursos. Só mais tarde é que assisti a algumas de suas conferências.

Mas foi à geografia que o senhor se dedicou. Qual a razão dessa escolha?

O preço dos livros de história e das assinaturas das revistas especializadas era um empecilho. Nas primeiras excursões ao campo, descobri que na geografia eu podia ler a paisagem e não precisava de livros. E também não havia bibliografia para os trabalhos que deveríamos fazer. Bastava ter saúde e boa vontade. Comecei então a ir ao campo e a fazer pequenas viagens. Como eu não tinha máquina fotográfica, aprendi a desenhar as paisagens que via.

Quais foram suas primeiras atividades depois de formado?

Entre 1944 — quando obtive o título de bacharel e me licenciei em geografia e história - e 1965, tentei conhecer o Brasil, pois não tinha dinheiro para viagens mais longas e não havia auxílio de nenhum tipo. Tive a sorte de me filiar à Associação dos Geógrafos Brasileiros, que se reunia uma vez por ano em pontos diversos do Brasil. A sociedade não se reunia em capitais, só em pequenas cidades e, durante essas reuniões, a gente aproveitava para fazer pesquisa de campo nos arredores. A sociedade foi fundamental na minha vida, porque, além de ter me permitido conhecer o Brasil, ainda me possibilitou publicar, em seu boletim, pequenas notas sobre as áreas que percorria.

A sociedade custeava suas despesas?

Custeava, porque eu era um aluno sem recursos. Muito cedo me tornei membro da diretoria e, quando o Boletim Paulista de Geografia foi criado, o professor Aroldo me convidou para participar de seu conselho editorial. Assim, pude compensar a falta de dinheiro. Eu não costumava freqüentar as rodas dos bares e restaurantes porque não podia dividir as despesas. Mas tive muita sorte com meus colegas. Um dia, o Miguel Costa Júnior sugeriu que fizéssemos um pool entre nós para conhecer um lugar distante. Com pouco dinheiro e com a ajuda da Fundação Brasil Central, fomos - o professor Pasquale Petrone, o Miguel Costa Júnior e eu - a Uberlândia. Lá, descobrimos um cidadão que estava levando mercadorias para a cidade de Aragarças (GO). O núcleo de Aragarças estava sendo construído pela Fundação Brasil Central na margem direita do rio Araguaia, em frente a uma cidadezinha muito pobre, que era Barra do Garças. Essa viagem foi fundamental na minha carreira, porque eu saí de uma região de morros, onde havia passado a infância e fui parar no Brasil Central, com chapadões intermináveis, cerrados e florestas de galeria. Pela primeira vez eu senti a diferença entre os domínios morfoclimáticos do Brasil. Comecei então a ler os trabalhos de viajantes como Saint-Hillaire e fiquei muito fixado no Brasil Central. Escrevi um longo trabalho sobre o sudoeste de Goiás, junto com o Miguel Costa Júnior. O trabalho, Contribuição para o estudo do sudoeste de Goiás, está publicado nos anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros.

Este foi seu primeiro trabalho?

Foi o meu primeiro trabalho de fôlego. Antes eu havia escrito sobre a geomorfologia do Jaraguá e suas vizinhanças. Todo o meu trabalho posterior decorreu dessa viagem ao Brasil Central e de uma outra que fiz mais tarde, pela Associação, ao Nordeste. Nessa segunda viagem, quando desci de Campina Grande (PB), após transpor o Planalto da Borborema, para a região de Patos (PB), vi pela primeira vez uma serra seca, cheia de cristas elaboradas em estruturas quartziticas mergulhantes. A partir da ponta dessa serra, entrei pela primeira vez no alto sertão, que é baixo, ondulado, com caatingas extensivas, rios intermitentes e uns morrotes bizarros, do tipo dos pães-de-açúcar, porém designados inselbergs pelos condicionantes semi-áridos do seu entorno. Compreendi imediatamente que estava diante do terceiro domínio da natureza brasileira. Durante muitos anos me dediquei a entender até onde iam aquelas depressões interplanálticas com montanhas e caatingas, solos de regiões secas, homens e sociedade sertaneja projetados pelo mundo da caatinga. A esse respeito, publiquei em Ciência Hoje o artigo "Os sertões - a originalidade da terra", um dos primeiros trabalhos de conjunto sobre a região dos sertões.

Quantos anos o senhor tinha quando fez esta primeira viagem?

A viagem para o sudoeste de Goiás foi em 1946, quando eu tinha 22 anos. A viagem ao Nordeste aconteceu mais tarde, em 1951 ou 1952. Na primeira fase de minha carreira, procurei entender a compartimentalização topográfica do Brasil. Já havia percebido três domínios integrados de natureza - o que hoje chamaríamos de domínios morfoclimáticos e fitogeográficos — e três domínios de geografia humana, com relações homem-ambiente muito rústicas e sofridas. Meu objetivo era entender a topografia geral do país, pois os mapas daquele tempo nada diziam. Falava-se do Espigão Mestre e a gente não sabia se se tratava de uma crista ou de um platô divisor. Adiante dessa região, que fica entre o Vale do São Francisco e a atual região de Brasília, havia o desconhecido. Sabia-se menos ainda sobre o espaço que se estendia entre essa região e a periferia da Amazônia. Eu me dedicava dia e noite a entender como era a compartimentação topográfica geral do Brasil, esse complexo sistema que envolve partes altas (montanhas, platôs) e rebaixamentos (depressões interplanáticas e sistemas de colinas e terraços). Essa foi a minha primeira preocupação, que deu substância à minha forma de perceber os espaços físicos e ecológicos.

O senhor tinha idéia de onde iria chegar com seus estudos?

Em 1956, estabeleci um roteiro de estudo de geomorfologia. Propus-me inicialmente a entender a compartimentalização e as formas que assumem os compartimentos, aquilo que se vê. Como geógrafo, eu tinha que ter olhos. E isso me foi ensinado, desde a primeira hora, pelos mestres franceses. Portanto, procurei desenvolver essa percepção, pois sem isso é impossível ser geógrafo. A partir de 1956 - por influência dos grandes geomorfologistas e geólogos do quaternário que vieram ao Brasil participar do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Rio de Janeiro — comecei a me interessar pela estrutura superficial da paisagem, ou seja, passei a interpretá-la como documento do passado recente, da história física e ecológica da Terra. Foi aí que me aproximei da ecologia e da geoecologia. Passei a me interessar sobretudo pela fisiologia da paisagem, por aquilo que depende do clima. Queria ter uma noção dinâmica da fisiologia da paisagem, que integrasse todos os seus componentes: águas caindo, rochas se decompondo, solos se formando, enfim uma cadeia sutil de eventos. Fixei um tripé de estudos: compartimentalização e formas; estrutura superficial da paisagem; e dinâmica ou fisiologia da paisagem.

O senhor sempre trabalhou sozinho?

Sim. Raramente fiz algum trabalho em colaboração, o que muita gente pode interpretar como egoísmo. Mas não tive outro jeito. Eu me diferenciei de meus colegas por ter uma certa facilidade para o trabalho de campo. Evidentemente, aqueles que seguiam uma carreira normal tiveram ciúmes. Quando escrevi o primeiro trabalho sobre o Jaraguá, meus amigos queriam publicá-lo numa revista de grêmio, mas alguns professores não aceitaram. Não porque tivessem críticas ao trabalho, mas porque não estava na "ordem do dia", porque eles não podiam avaliar se eu estava certo ou não. Com o trabalho sobre Goiás, aconteceu a mesma coisa: com base nas observações que havia feito, cheguei à conclusão de que a bacia do Paraná era um belo exemplo de cuestas concêntricas de frente externa, como era exemplificado no livro de Emmanuel De Martonne. Fiz então um longo trabalho de interpretação e o apresentei em Goiânia. Os geógrafos que conheciam a região sabiam que eu tinha razão, mas, ainda assim, resolveram contestar. Veja que maldade com quem está iniciando! Eu tinha apenas 22 anos, era jovem, caipira e provinciano. Alguns diziam que eu tinha excesso de imaginação. Sofri profundamente com essas críticas. Uma publicação naquele momento da minha vida era muito importante, e eu quase caí das nuvens quando o professor Aroldo de Azevedo disse que publicaria o meu trabalho. Ele o publicou na íntegra, com a bibliografia que usei para realizá-lo e que apresentava um visão diferente sobre a formação de bacias. Quando o trabalho saiu, o professor Aroldo recebeu uma carta do México que dizia: "Gostei muito do trabalho deste cidadão de nome complicado. Representa um esforço de leitura e de aplicação de conhecimentos como eu ainda não havia visto." Aí é que meus amigos mais próximos se deram conta de que as reações maldosas eram de pessoas enciumadas. A vida inteira essas pessoas ficaram reclamando do que eu fazia, e quase tudo o que fiz foi aceito com muita indiferença por elas.

A que o senhor atribui essa atitude?

Todos competiam para emergir. Alguns até já tinham emergido por força de seu próprio vigor intelectual, outros por seus padrinhos.

O que há de peculiar no seu trabalho de geógrafo?

Na realidade, fui um grande viajante e um aprendiz de geógrafo. No início viajava para conhecer um pouco de tudo e, depois, já como geógrafo, para detalhar o conhecimento. No começo queria ter uma macrovisão do Brasil, mas, ao perceber que parte do passado recente estava na estrutura superficial da paisagem, tive que descer e olhar para os barrancos, atuando como geólogo de superfície. Eu ficava encantado, em 1956, ao ver os geógrafos estrangeiros interessando-se apenas pelos documentos dos solos superpostos vistos nos barrancos. Nessa época, geografia para mim era olhar a organização geral da paisagem e a projeção dos homens. Olhar barrancos era tarefa de geólogos. A integração que fiz — olhar o barranco e o espaço total — foi muito saudável e até mais útil para uma visão integrada do mundo físico e ecológico do que aquilo que aprendi com meus mestres eventuais.


Fonte: CANAL CIÊNCIA

Nenhum comentário:

Postar um comentário



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...