Jesus o Bom Pastor

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23 agosto 2010

O QUE É GEOGRAFIA CRÍTICA?

1. As origens
Geografia crítica -- ou simplesmente Geocrítica -- nasceu em meados da década de 1970, inicialmente na França e posteriormente na Espanha, Itália, Brasil, México, Alemanha, Suíça e inúmeros outros países.
Essa expressão, na origem, foi criada ou pelos menos identificada com a obra A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra (de 1976), de Yves Lacoste, e com a proposta da revistaHérodote (cujo primeiro número também foi editado em 1976), que no início era uma revista de "geopolítica crítica" e também de geografia, com especial ênfase na renovação do seu ensino em todos os níveis.
Pode-se dizer que os pressupostos básicos dessa "revolução" ou reconstrução do saber geográfico eram a criticidade e o engajamento. Por criticidade se entendia uma leitura do real -- isto é, do espaço geográfico -- que não omitisse as suas tensões e contradições, que ajudasse enfim a esclarecer a espacialidade das relações de poder e de dominação. E por engajamento se pensava numa geografia não mais "neutra" e sim comprometida com a justiça social, com a correção das desigualdades sócio-econômicas e das disparidades regionais. A produção geográfica até então, dizia-se -- embora admitindo exceções: Réclus, Kropotkin e outros -- , sempre tivera uma pretensão à neutralidade e costumava deixar de lado os problemas sociais (e até mesmo os ambientais na medida em que, em grande parte, eles são sociais), alegando que "não eram geográficos".
É lógico que essa nova maneira de encarar a geografia não surgiu do nada. Ela se enraizou e floresceu num contexto de revisão de idéias e valores: o maio de 1968 na França, as lutas civis nos Estados Unidos, os reclames contra a guerra do Vietnã, a eclosão e a expansão do movimento feminista, do ecologismo e da crise do marxismo... E ela se alimentou de muito do que já havia sido feito anteriormente, tanto por parte de alguns poucos geógrafos quanto por outras correntes de pensamento que podem ser classificadas como críticas. Desde o seu nascedouro, a Geografia crítica encetou um diálogo com a Teoria crítica (isto é, com os pensadores da Escola de Frankfurt), com o anarquismo (Réclus, Kropotkin), com Michel Foucault, com Marx e os marxismos (em particular os não dogmáticos, tal como Gramsci, que foi um dos raros marxistas a valorizar a questão territorial), com os pós-modernistas e inúmeros outras escolas de pensamento inovadoras. Mas ela principalmente representou uma abertura para -- e um entrelaçamento com -- os movimentos sociais: a luta pela ampliação dos direitos civis e principalmente sociais, pela moradia, pelo acesso à terra ou à educação de boa qualidade, pelo combate à pobreza, aos preconceitos de gênero, de cultura/etnia e de orientação sexual, etc.
Quase ao mesmo tempo, embora alguns anos antes, surgia na Grã-Bretanha e principalmente nos Estados Unidos a chamada Geografia radical, que significou uma reação dos geógrafos anglo-saxônicos -- ou pelo menos de uma parte deles -- contra o excesso de quantitativismo, contra a denominada Geografia pragmática, ou quantitativa, que predominou nesses países nos anos 1960 e na primeira metade da década de 70. Também a Geografia radical reprochou a pretensa neutralidade da tradição geográfica e, principalmente, o comprometimento implícito dessa Geografia quantitativa com o poder instituído, com o Estado capitalista e com as grandes empresas. Era preciso revirar a geografia, afirmava-se, usá-la a favor dos dominados, dos oprimidos ou, como diríamos hoje, dos excluídos.
Da mesma forma que a Geografia crítica, a Geografia radical buscou subsídios tanto nos movimentos populares e sociais quanto nas correntes radicais de pensamento, em especial o marxismo. Neste ponto, ela diferiu um pouco da Geografia crítica, pois esta desenvolveu-se de forma um pouco mais aberta e pluralista, tendo maior convívio com outras correntes de pensamento e, inclusive, demonstrando sérias restrições ao socialismo real e ao marxismo "oficial" ou ortodoxo, o marxismo-leninismo. Além disso, a Geografia crítica sempre insistiu na renovação escolar, na crítica à escola e à geografia tradicionais, na necessidade de um novo ensino voltado para desenvolver no educando a criticidade, a inteligência no sentido amplo do termo (ao invés de mera capacidade de memorização) e, no final das contas, o senso de cidadania plena. Já a Geografia radical -- talvez pelo fato de que a disciplina geografia foi excluída do currículo escolar das escolas fundamentais e médias dos Estados Unidos durante mais de três décadas (nos anos 1990 ela voltou, inclusive revalorizada) -- pouco se preocupou com o ensino. O seu grande adversário -- e portanto, o alvo a ser atingido -- era a Geografia pragmática e não o tradicionalismo nas escolas fundamentais e médias e, por tabela, no ensino universitário.
É sintomático o fato de que na última década do século XX, quando começou a ocorrer um forte movimento de reconstrução do sistema escolar norte-americano (suscitado em grande parte pela necessidade de concorrer no mercado internacional, sob novas condições históricas, com a Europa, com o Japão e com outras economias dinâmicas) e a sua abertura à revolução técnico-científica, à globalização e inclusive aos direitos humanos, os educadores e geógrafos escolares nesse país tiveram que buscar subsídios em outras sociedades -- na França, na Alemanha, na Espanha e até mesmo no Brasil. Isso porque, nestes sistemas nacionais de ensino, a disciplina geografia nunca chegou a ser completamente eliminada e, além do mais, ocorreram aí nos anos 80 vigorosos movimentos de renovação na geografia escolar, algo que os Estados Unidos não vivenciaram nesse período. Pouco a pouco, nas escolas elementares e médias norte-americanas vai se tornando usual o ensino da geografia, inclusive com uma maior carga horária a partir de mais ou menos 1994, que se preocupa com as relações de gênero (homem/mulher), com a questão da orientação sexual, com novas formas de preconceito étnico e cultural, com as desigualdades internacionais e inter-regionais, com os problemas ambientais, etc., algo que para eles é novo em geografia (embora venha sendo introduzido a um ritmo acelerado), mas que para nós já se tornou relativamente banal desde os anos 1980.













Vemos acima duas ilustrações representativas da Geografia radical (em cima) e da Geografia crítica (embaixo) nos seus primórdios. 
A imagem de cima, uma versão espanhola (publicada na revista Geo-critica, de Barcelona) de uma ilustração da revista norte-americana Antipode - A radical journal of Geography, mostra a atitude dos geógrafos radicais, que se apossam da geografia -- aí representada como uma bela e desnuda mulher -- e a carregam através do "rio do Compromisso", para horror de um geógrafo quantitativo, que vê com desespero essa atitude. Ao lado do geógrafo pragmático, no chão, existem alguns objetos que ele utiliza: são os modelos, que esquematizam e formalizam a realidade. Já o geógrafo radical, representado de forma bem diferente do quantitativo (mais jovem, com barba, sem terno nem malinha de executivo), carrega a geografia para o lado do rio onde existem problemas (vide a fábrica poluidora no fundo da ilustração) e pessoas reais, com os seus problemas e dilemas. 
A imagem de baixo, que foi publicada no número 2 da revista francesa Hérodote - Revue de géographie et de géopolitique, mostra uma sala de aula com uma série de alunos, que na realidade são pensadores famosos (Marx, Stálin, Lénin, Mao, Proudhon, Gramsci, Kropotkin... e até mesmo H.Kissinger no canto, com um chapéu de burro, na época ministro norte-americano para as relações exteriores) e estão observando um quadro-negro, no qual está desenhado um mapa. Todos eles estão aprendendo geografia, ou seja, estão procurando rever as suas idéias a partir de uma perspectiva espacial. 
Essas duas revistas -- a francesa Hérodote (existente desde 1976) e a norte-americana Antipode (criada em 1969) -- foram importantes nesses movimentos de renovação, pois eram nos anos 70 órgãos aglutinadores de geógrafos contestadores, grupos relativamente pequenos na época. Elas foram assim pólos de irradiação de novas idéias geográficas, mas essa função hoje já se espalhou e diversificou. Essas revistas ainda existem, mas tão somente como uma pálida expressão cultural e social do que representaram no passado, pois por um lado esses movimentos em grande parte convergiram e se expandiram (ou foram reatualizados) para outros lugares -- nos quais surgiram bons trabalhos de pesquisas e novas (ou renovadas) publicações -- e, por outro lado, essa Geografia crítica ou radical, ou simplesmente Geocrítica como advoga a mencionada revista espanhola, tornou-se cada vez mais complexa e plural, não se restringindo mais a grupos específicos que se expressam através de algumas poucas revistas.
2. A fase atual 

Nos dias atuais existem geografias críticas, ou radicais, no plural. Afinal, toda oposição é mais ou menos unida no início, no processo de luta contra o status quo. É uma frente, que quanto começa a se tornar hegemônica manifesta todas as suas contradições, que inclusive são positivas na medida em que o pensamento único ou unívoco é autoritário e empobrecedor. E como o(s) adversário(s) já não existe mais, ou pelo menos não tem mais a presença marcante que tinha no passado -- a geografia quantitativa praticamente sumiu do mapa, embora a matemática, a estatística, a lógica formal e os computadores continem a ser bastante utilizados, muitas vezes até mais que nos anos 60 ou 70, só que sob outros prismas diferentes daquele intrumental-pragmático; e a geografia tradicional já não tem a menor condição de cercear o pensamento crítico e nem mesmo de emular com ele --, a questão agora é a busca de caminhos próprios ou, infelizmente, para alguns, a acirrada disputa por poder, por lugares na mídia, nas publicações, nos departamentos, nas universidades, em cargos governamentais, etc.
Desde o início havia uma clivagem latente entre os radicais anglo-saxônicos -- que em grande parte foram oriundos da geografia quantitativa, que se esgotou nos anos 70, e procuraram construir uma teoria geográfica formal e esquemática, com freqüência inspirada numa leitura positivista do marxismo (a influência do althusserianismo aí foi enorme, paradoxalmente muito maior que na geografia francesa) -- e os críticos latinos, que tiveram uma maior abertura à pluralidade teórico-metodológica e um produtivo diálogo com Foucault. Mas essa clivagem subdividiu-se, tornou-se cada vez mais complexa, não sendo mais suficiente para dar conta da situação hodierna. Sempre houve também, desde os anos 70, uma enorme dificuldade em encaixar a geografia física nesse movimento de renovação. Afinal, praticamente todos -- ou pelo menos a imensa maioria -- os pioneiros da geografia crítica ou radical eram identificados com a geografia humana, em especial com a geografia política/geopolítica, com a geografia urbana e com a geografia econômica. Foi no estudo do subdesenvolvimento, da justiça social, da pobreza e da marginalidade, das relações de poder no espaço, da construção social do espaço enfim, que a(s) geografia crítica ou radical se afirmou.
A geografia radical anglo-saxônica, a bem da verdade, sequer tentou incorporar seriamente o estudo geográfico da natureza. Quando se consulta a revista Antipode na sua fase áurea, de 1969 até por volta de 1980, nem mesmo com o uso de uma lupa iremos encontrar algum artigo de geografia física. Talvez isso se deva, pelo menos em parte, à tradição acadêmica norte-americana de situar a geomorfologia como um ramo da geologia e a climatologia como um subproduto da física. Mas é inegável que quando se procura esmiuçar o que significa espaço na obra de algum geógrafo anglo-saxônico radical -- seja em David Harvey, R. Peet, N. Smith, J.R. Short, P. Taylor, D. Slater, G. Parker ou qualquer outro do mesmo calibre --, dificilmente iremos nos deparar com alguma referência aos processos naturais em si. Em contrapartida, na geografia crítica houve desde o início uma tentativa de levar em conta não apenas a questão ambiental mas também a natureza em si. Podemos encontrar inúmeros artigos de Jean Tricard, de G. Bertrand e outros geógrafos físicos na revistaHérodote em sua fase áurea, de 1976 até meados dos anos 80. Inclusive existem nela números especiais dedicados ao estudo geográfico da natureza e às relações entre geografia e ecologia.
Todavia, foram afinal movimentos basicamente exógenos à geografia, mesmo que eventualmente tenham contado com a contribuição de um ou outro geógrafo -- isto é, a crise ambiental planetária, a eclosão do ecologismo e o advento de um novo pensamento holístico --, que ofereceram a esta a possibilidade de uma incorporação mais efetiva do estudo da natureza no bojo do processo de renovação crítica ou radical. As idéias de "a Terra, planeta vivo" (tão cara a Tricard, embora de inspiração em Lovelock), de uma abordagem holística do real (que não se confunde com a totalidade marxista, que possui um viés economicista e encara a natureza tão somente como recurso) e a expansão dos estudos de impactos ambientais (algo decorrente da necessidade social de preservar/conservar o meio ambiente), acabaram oferecendo uma nova luz no antigo dilema geográfico de integrar os estudos da sociedade e da natureza.
Simplificando bastante, podemos concluir que existem inúmeras geografias críticas, que dependem fundamentalmente dos problemas estudados e da opção teórico-metodológica do estudioso. Sujeito e objeto se entrelaçam, pois como afirmou o filósofo Merleau-Pointy:
"Não há uma pergunta que resida em nós e uma resposta que esteja nas coisas, um ser exterior a descobrir e uma consciência observadora. A solução está também em nós, e o próprio ser é problemático. Há algo da natureza da interrogação que se transfere para a resposta".





Nesta outra ilustração da revista espanhola Geo-critica, podemos discernir quatro olhares geográficos diferentes sobre uma mesma(?) realidade, no caso uma pequena propriedade rural.
No alto, de terno e gravata, vemos um geógrafo quantitativo imaginando que modelo matemático seria ideal para se explicar -- ou esquematizar? -- isso. Já do mesmo lado esquerdo, mas abaixo, temos o geógrafo (ou professor) tradicional, que procura sintetizar a paisagem, isto é, enfocar todos aqueles itens que fazem parte do esquema "a Terra e o Homem". Do lado direito, no alto, temos o geógrafo da percepção, que vai procurar retratar a " realidade vivida" das pessoas. E nesse mesmo lado, abaixo, temos o geógrafo radical, que só enxerga a pobreza (ou a exploração) existente nessa realidade.
Sem dúvida que essa representação é caricatural, pois a diversidade de enfoques (e as nuanças que existem em cada um deles) é bem mais rica e complexa do que essa divisão em quatro geografias. Além disso, não há aí nenhuma referência ao estudo geográfico da natureza, que provavelmente seria levado em conta, nessas quatro visões, somente pelo tradicionalista. Mas talvez elas tenham sido as correntes geográficas mais representativas, pelo menos na geografia humana, nas décadas de 1970 e 80. Só que desde esta última década, os anos 80, já existe sem dúvida uma progressiva tendência no sentido de uma relativa convergência dessas correntes -- cada uma aproveitando algo das outras. A geografia fenomenológica ou da percepção, por exemplo, tanto pode ser "de esquerda" ou crítica (quando não omite os problemas sociais e faz uso de autores como Merleau-Pointy, Sartre e outros fenomenológicos/existencialistas que nunca deixaram de valorizar as desigualdades e as relações de poder), como pode ser "tradicional" ou meramente subjetivista (quando, na trilha de autores como Yi-Fu, omite as relações sociais de dominação e enfoca o real numa perspectiva de "integração" do indivíduo ao meio). E a(s) geografia(s) crítica(s) tanto pode(m) ser dogmática e economicista (supervalorizando o "modo de produção", a exploração e o imperialismo), como também pode(m) ser pluralista, democrática, inovadora e inclusive assimilar métodos/técnicas fenomenológicos (tais como as experiências de vida e a História oral). 
Existe ainda a questão do ensino, pois é no sistema escolar que a geografia vê-se obrigada a reafirmar a sua unidade. Na pesquisa e na atividade docente a nível universitário cada um pode ser especialista e todos podem deixar de lado a questão da unidade da ciência geográfica. (Ou melhor, quase todos, pois sempre há os que ficam encarregados da discussão epistemológica). No ensino fundamental e médio, entretanto, ocorre o oposto, pois aí o geógrafo não pode se furtar ao desafio de analisar o natural e o social concomitantemente, nas suas especificidades e principalmente nas suas inter-relações.

3. Geocrítica e Ensino

A Geografia crítica escolar -- isto é, aquela praticada no ensino fundamental e médio -- possui uma dinâmica própria e relativamente independente da sua vertente acadêmica. É importante ressaltar esse fato, pois muitos imaginam, de forma ingênua ou até mesmo preconceituosa, que as disciplinas escolares (Matemática, Língua portuguesa, Ciências, História, Geografia...) tão somente reproduzem, de forma simplificada, os conteúdos que são criados e desenvolvidos na universidade, no ensino superior, na graduação e na pós-graduação. É como se o professor da escola fundamental e média fosse apenas um reprodutor do saber construído em outro lugar, o "lugar competente", e a sua tarefa consistisse essencialmente em adaptar esse saber à faixa etária do aluno. Seu labor seria então "didático" num sentido tradicional: como ensinar da melhor maneira um determinado conteúdo já pronto e que o educando deve meramente assimilar.
Mas essa forma de ver é parcial e, no extremo, autoritária. Pois ela ignora que o professor e os seus alunos também podem ser co-autores do saber, também podem pesquisar e chegar a conclusões próprias e que não são meras cópias ou simplificações do conhecimento já pronto e instituído. O professor crítico e/ou construtivista -- e não podemos esquecer que o bom professor é aquele que "aprende ensinando" e que "não ensina mas ajuda os alunos a aprender" -- não apenas reproduz mas também produz saber na atividade educativa. E tampouco o educando pode ser visto como um receptáculo vazio que irá assimilar ou aprender um conteúdo externo à sua realidade existencial, psicogenética e sócio-econômica. Ele é um ser humano com uma história de vida a ser levada em conta no processo de aprendizagem, que reelabora, assimila à sua maneira --inclusive reconstruindo ou até criando --, o saber apropriado para tal ou qual disciplina.
E na Geografia essa característica essencial da verdadeira atividade educativa talvez seja ainda mais acentuada do que em outras disciplinas, tais como, por exemplo, na Física ou na Matemática. Isso porque no ensino da Geografia é importantíssimo -- é mesmo indispensável -- o estudo e a compreensão da realidade local onde os alunos vivem, onde a escola se situa. Isso não está (nem poderia estar) nos manuais -- no máximo existem neles dicas, ou esquemas sempre passíveis de aperfeiçoamento para se estudar este ou aquele aspecto dessa realidade --; e não se trata somente de "aplicar" as definições ou as explicações contidas no "conteúdo geral", mas também de (re)criar conceitos e explicações, descobrir coisas novas enfim.
Por sinal, a Geografia escolar é anterior ao advento da chamada Geografia científica ou acadêmica. Parodiando um estudioso da História do pensamento geográfico, Horácio Capel, podemos lembrar que muito antes de existirem os geógrafos já existiam os professores de geografia. Isto é, muito antes de a Geografia ser considerada uma "ciência" ou uma disciplina universitária, muito antes dela ter sido institucionalizada em meados do século XIX (com Humboldt e Ritter), já existiam aulas de Geografia (para crianças, para adolescentes e até mesmo para adultos) e manuais que procuravam esquematizar esse saber escolar e prático (pois servia para viagens, para o comércio, para a guerra...). Podemos inclusive afirmar que, em grande parte, a institucionalização da Geografia no século XIX deveu-se fundamentalmente à necessidade de formar um número cada vez maior de professores dessa disciplina para o sistema escolar em (enorme) expansão no período. E o mesmo ocorreu no passado recente, com o surgimento da Geografia escolar crítica, e continua a ocorrer nos dias atuais, com inúmeras novas experiências no ensino elementar e médio que, em alguns casos, produzem inovações em relação ao que já existe na produção acadêmica.
Dessa forma, não foi após e muito menos devido às revistas Antipode e Hérodote que o estudo crítico da Geografia se desenvolveu nas escolas elementar e média. Essas revistas devem ser vistas mais como um marco -- ou um símbolo -- na renovação da Geografia universitária e de pesquisas a nível superior, mas pouca importância tiveram (atenção: escrevemos pouca e não nenhuma) naqueles níveis de ensino. Não que esses níveis de ensino estivessem "atrasados" e levassem muitos anos para se atualizar. Nada disso. É que muito antes do advento das geografias radical e crítica (acadêmicas) já existiam centenas, talvez milhares de professores de Geografia a nível médio ou de 5a. à 8a. séries que inovavam as suas lições -- inclusive buscando subsídios na economia, na sociologia, na história, no marxismo... e principalmente nas lutas sociais de suas épocas/lugares -- e incorporavam o estudo do subdesenvolvimento e dos sistemas sócio-econômicos, das relações de gênero (homem/mulher), das sociedades ditas primitivas, dos problemas sociais urbanos, da reforma agrária (tema tão importante no Brasil do início dos anos 1960!), e isso em muitos casos ANTES desses temas serem abordados pelos compêndios ou mesmo pelas teses, artigos e livros acadêmicos de geografia. Uma parte importante dos geógrafos críticos acadêmicos começou como professores do ensino fundamental e médio, e foi em grande parte aí que eles iniciaram as suas reflexões e as novas abordagens, que depois foram sistematizadas/reelaboradas com vistas à produção de trabalhos universitários. Não é difícil entender porque isso ocorreu, e ainda ocorre: malgrado a idéia preconcebida segundo a qual o professor no ensino fundamental e médio não inova, não cria, não ousa sair da rotina e do tradicionalismo (a não ser quando algum novo "programa oficial" o obrigue a isso), em geral ele -- ou melhor, alguns deles -- faz tudo isso com uma freqüência maior do que os estudos acadêmicos. Ao contrário do que se imagina, é muito mais fácil (e freqüênte, convém enfatizar) inovar no conteúdo e nos métodos de um curso no ensino médio, em especial nas escolas públicas (ou em algumas particulares), do que em teses e outros trabalhos acadêmicos. (O que não significa que essas inovações não ocorram aqui. Elas ocorrem, sem dúvida, mas pelo menos na Geografia e nos anos 1960, 70 e 80 foram em geral posteriores, e não anteriores, ao que já se vinha fazendo, pelo menos em parte, no ensino médio). As regras na academia são mais sedimentadas e fechadas, o controle por parte das bancas, das comissões de publicações, etc., é maior e normalmente existe um maior apego aos estereótipos ou às idéias pré-definidas sobre o que deveria ser abordado naquele assunto X ou Y. Só para citar um exemplo, poderíamos lembrar que Yves Lacoste, cuja importância para a definição da Geografia crítica já foi mencionada, teve enormes dificuldades em conseguir ser aprovado (só o foi depois de várias tentativas e sendo obrigado a "caçar" em locais distantes professores titulares que aceitassem participar da sua banca!) na sua tese de livre-docência na França devido ao tema -- "Unidade e diversidade do Terceiro Mundo (Das representações planetárias às estratégias sobre o terreno)" -- e à abordagem geopolítica do assunto, considerados na época (em pleno início da década de 1980!) como "não geográficos" e políticos em demasia, isto é, "não neutros". Pois bem: esse geógrafo, que também começou como professor no ensino fundamental e médio (e autor de livros didáticos), já trabalhava com esse assunto na sua atividade docente e nos seus manuais muito antes de ter feito essa pesquisa acadêmica. Mesmo aqui no Brasil poderíamos escavar inúmeros casos similares, pois a abordagem, no ensino fundamental e médio, de temas/problemas tais como as relações de gênero, críticas ao socialismo real e à burocracia, choques culturais, orientação sexual, o novo racismo, etc., foi indiscutivelmente anterior a qualquer pesquisa, tese ou publicação oriundas dos departamentos de geografia das universidades.
Isso não significa que não existam ou que não devam existir relações de complementariedade entre a universidade e os níveis elementar e médio de ensino. Mas essas relações são mais complexas do que a idéia simplista segundo a qual aqueles níveis de ensino devem apenas "simplificar" e reproduzir o conteúdo que é produzido na academia. Esta idéia, infelizmente dominante, costuma gerar verdadeiras aberrações: "propostas curriculares" ou PCN's para o ensino fundamental e médio feitos por professores universitários que não têm experiência nesse nível de ensino e que desconhecem completamente a realidade dos alunos que aí estudam. Costuma-se também pura e simplesmente ignorar, e portanto não aproveitar, as experiências inovadoras que os professores -- pelo menos alguns -- estão produzindo nas escolas. O resultado, normalmente (existem algumas exceções, mas são casos em que os elaboradores tinham vasta experiência nesses níveis de ensino e contaram com a colaboração ativa de professores que atuam na sala de aula), é que esses currículos são impraticáveis e acabam não sendo operacionalizados (embora muitos professores sejam obrigados a fingir que os utilizem, para agradar a alguns burocratas que tentam controlar a atividade docente); esses currículos em geral estão aquém daquilo que muitos professores praticam e mais atrapalham do que ajudam na melhoria do sistema escolar.
A Geografia crítica escolar, portanto, não consiste na mera reprodução na escola fundamental e média daquilo que foi anteriormente elaborado pela produção universitária crítica. Isso até pode ocorrer, mas não é -- e nunca foi -- o essencial ou mesmo a regra geral. O essencial é levar em conta a realidade dos alunos e os problemas de sua época e lugar. Como se sabe, a Geografia escolar crítica -- ou as geografias, na medida em que não existe um caminho ou um esquema único -- se opõe à Geografia tradicional e normalmente mnemônica (isto é, que enfatiza a memorização, a lista de fatos ou acidentes: cidades principais, unidades de relevo, rios e seus afluentes, tipos de climas, cidades-capitais, etc.), que tem por base o esquema "A Terra e o Homem". Mas é lógico que a própria Geografia tradicional conheceu várias fases e nuanças e nunca foi um bloco monolítico. Existiram aí autores que valorizaram a explicação e combateram veementemente a descrição e a memorização (por exemplo: Delgado de Carvalho, Pierre Monbeig, Nilo Bernardes e outros), que incluiram bons textos literários nos seus manuais (exemplo: Clóvis Dottori e outros) e até mesmo, em especial na última fase da Geografia tradicional francesa, com Pierre George e a sua entourage -- a chamada "escola georgeana" --, que incorporaram novos temas (subdesenvolvimento, sistemas sócio-econômicos, "explosão demográfica", organização do espaço e planejamento, região como espaço polarizado, etc.) que em alguns casos demandaram uma análise crítica do real. Mas foi uma crítica limitada e parcial: nunca ancorada nos movimentos sociais, mas sim em um modelo de "ciência" objetiva e neutra; e tampouco incorporando ou dialogando com autores/escolas críticos (anarquismos, Foucault, Escola de Frankfurt, Lefebvre, Gramsci e outros marxistas, etc.); e, acima de tudo, essencialmente preocupada em valorizar a Geografia frente ao Estado e às grandes empresas através da proposta de uma "Geografia ativa" ou voltada para a ação (ou melhor, para o planejamento). A Geografia escolar crítica vai além desses avanços que ocorreram na Geografia tradicional -- embora os assimilando à sua maneira -- e preocupa-se basicamente com o desenvolvimento da autonomia, da criatividade e da criticidade do educando -- com a cidadania, afinal, que é o resultado e a condição da existência de cidadãos ativos e participantes, que questionam e (re)constroem os direitos -- e com uma sociedade mais justa e igualitária, na qual os direitos das minorias (inclusive o direito de ser diferente) sejam preservados.
Um ensino crítico da Geografia, assim sendo, não se limita a uma renovação do conteúdo -- com a incorporação de novos temas/problemas, normalmente ligados às lutas sociais: relações de gênero, ênfase na participação do cidadão/morador e não no planejamento, compreensão das desigualdades e das exclusões, dos direitos sociais (inclusive os do consumidor), da questão ambiental e das lutas ecológicas, etc. Ela também - e principalmente - implica em valorizar determinadas atitudes -- combate aos preconceitos; ênfase na ética, no respeito aos direitos alheios e às diferenças; sociabilidade e inteligência emocional... -- e habilidades (raciocínio, aplicação/elaboração de conceitos, capacidade de observação e de crítica, etc.).
E para isso é fundamental uma adoção de novos procedimentos didáticos: não mais apenas ou essencialmente a aula expositiva, mas sim estudos do meio (isto é, trabalhos fora da sala de aula), dinâmicas de grupo e trabalhos dirigidos, debates, uso de computadores (e redes) e outros recursos tecnológicos, preocupações com atividades interdisciplinares e com temas transversais, etc. E muito menos pode-se omitir o estudo da natureza, a geografia física, como querem alguns. Não é porque alguns geógrafos críticos ou radicais famosos e importantes abordam somente temas sócio-econômicos que a geografia escolar deve fazer o mesmo. Esse geógrafos, na realidade, são especialistas e, via de regra, não possuem experiência (e nem qualquer interesse) no ensino elementar e médio. Só que, repetimos, o objetivo da disciplina escolar Geografia não é reproduzir o discurso desses geógrafos especialistas e sim levar o educando a compreender o mundo em que vive, o espaço geográfico da escala local até a global. E a compreensão desse espaço passa necessariamente pelo estudo da natureza-para-o-homem, das paisagens naturais enquanto encadeamento de elementos (clima, relevo, solos, águas, vegetação e biodiversidade), que possuem as suas dinâmicas próprias e independentes do social. E também passa, principalmente nos dias de hoje, pelo estudo da questão ambiental, que não pode prescindir da dinâmica da natureza (e suas alterações/reações frente à ação humana), e que é fundamental para se perscrutar os rumos da humanidade e de cada sociedade nacional neste novo século.




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