Jesus o Bom Pastor

Jesus o Bom Pastor

03 setembro 2010

A luta final de Che




A luta final de Che
Nas selvas da Bolívia, o revolucionário argentino de alma cubana morreu isolado, doente, faminto e maltrapilho. Mas fiel aos príncipios revolucionários em que acreditava
por Reportagem Giovana Sanches, Celso Miranda
Já era tarde da noite de 3 de novembro de 1966 quando o diplomata Adolfo Mena González, de 38 anos, calvo e barrigudo, chegou ao aeroporto de La Paz, na Bolívia. Cansado da longa viagem – havia passado por Moscou, Praga, Viena, Frankfurt, Paris, Madri e São Paulo, como mostrava seu passaporte uruguaio –, declarou aos fiscais da imigração que pretendia levantar dados para a Organização dos Estados Americanos. Liberado, seguiu para o centro da capital, onde se hospedou numa suíte do Hotel Copacabana. Ali conheceu os irmãos bolivianos Guido e Roberto Peredo e com eles partiu de avião para Cochabamba, a 800 quilômetros de La Paz. Depois de mais três dias de viagem de jipe, chegou às margens do rio Ñancahuazú. Em 7 de novembro, escreveu em seu diário: “Hoje começa uma nova etapa”. Só então revelou sua verdadeira identidade: González era, na verdade, o guerrilheiro Ernesto Che Guevara.

Depois de ter levado a Revolução Cubana à vitória em 1959, ao lado de Fidel e Raúl Castro, Che se dedicara a espalhar ideais revolucionários pelo mundo. “Ele esteve no Congo em 1964, onde experimentou um terrível revés, e, de volta a Cuba, entrou na clandestinidade para trabalhar secretamente em seus novos planos: criar na América Latina um foco guerrilheiro que pudesse convulsionar todo o continente”, diz o historiador mexicano Jorge Castañeda em Che Guevara – A Vida em Vermelho. “Na época, a América Latina parecia um grande tabuleiro da Guerra Fria, onde ondas de inspiração comunista esbarravam em ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos.”

A Bolívia não fugia à regra. Em 1964, depois de duas décadas de instabilidade (em que sindicatos, Exército e latifundiários se digladiaram pelo poder), um golpe pôs no governo o general René Barrientos. A Bolívia se tornou, então, um notório aliado dos Estados Unidos – naquela época, em termos de ajuda militar americana, o país só perdia para Israel. Era a nação mais pobre da América depois do Haiti.

Repressão, pobreza, presença imperialista: segundo as concepções políticas de Che, a Bolívia era perfeita para uma nova vitória revolucionária. Para colocar a teoria em prática, entretanto, era preciso recrutar uma equipe. Em julho de 1966, enquanto Che permanecia incógnito, Raúl Castro, comandante das Forças Armadas de Cuba, convocou alguns veteranos da Revolução Cubana. O capitão Harry Villegas Tamayo, o Pombo, estava presente e relembrou a cena em 2006, numa entrevista à revista chilena Punto Final. “Raúl disse que havíamos sido chamados para integrar uma Brigada Internacional de Combatentes pela Liberdade dos Povos”, afirmou. “A resposta foi um unânime ‘eu vou!’”

A tropa de elite passou por três meses de treinamento. Depois, todos seguiram por caminhos diferentes para a América do Sul. Já Che precisava de um bom disfarce para conseguir chegar à Bolívia sem ser notado. Cortou o cabelo e a barba, adotou óculos de lentes grossas e colocou uma prótese dentária que mudou sua fisionomia e sua voz. No fim de outubro, visitou sua família pela última vez em Havana. Jantou com as filhas, apresentado a elas como “tio Ramón”. O disfarce funcionou – as meninas só saberiam que aquele era seu pai depois de receber a notícia de sua morte.

Bem-vindo à selva

A região do rio Ñancahuazú é coberta por uma mata densa, cortada por córregos e mangues. De repente, erguem-se elevadas montanhas ou abrem-se crateras e desfiladeiros, chamados na região de quebradas. Foi às margens das águas barrentas do Ñancahuazú que Che encontrou pela primeira vez sua tropa, instalada num sítio que haviam comprado na região para servir de disfarce temporário. Eram apenas 13 homens, entre veteranos cubanos e jovens bolivianos. Em novembro, Che inspecionou o primeiro acampamento na selva – duas cabanas sobre o chão barrento.

No início de dezembro, o líder anotou em seu diário (que depois seria publicado como Diário da Guerrilha Boliviana): “Não tenho os homens e as armas que esperava”. Che se referia à falta de ajuda do Partido Comunista Boliviano. Seu líder, Mário Monje, insistia em ter a palavra final sobre a guerrilha. Che não aceitou, e os dois cortaram relações. A briga era indesejável, mas não comprometia a estratégia de Che. O apoio de partidos e sindicatos poderia ser obtido à medida que avançassem as conquistas dos guerrilheiros. A referência, é claro, era a Revolução Cubana – que quando começou, no fim de 1956, tinha apenas 12 homens isolados no meio do mato (incluindo o próprio Che).

Todo o discurso político, porém, parecia muito distante naquela manhã de janeiro de 1967, em que a selva de Ñancahuazú afundava sob as chuvas de um verão amazônico. Foi quando os guerrilheiros liderados por Che deram os primeiros passos de sua quimera revolucionária. Já eram 27 homens que, em expedições diárias, se familiarizavam com o território. A fase de “implementação e infra-estrutura” durou quase dois meses. Numa área de cerca de 140 quilômetros quadrados, estabeleceram postos de observação e abriram covas para estocar remédios, alimentos, armas e equipamentos de comunicação. “Abrir trilhas e desenhar rotas para deslocamento e defesa não parecia uma missão perigosa, nem revolucionária, mas era cumprida com dedicação absoluta e disposição militar”, lembra Dariel Benigno Ramirez, um dos veteranos da guerrilha, em Memorias de un Soldado Cubano (inédito em português).

Surra no Exército

“O primeiro estágio está terminado. Os homens chegaram algo cansados, mas de modo geral conduziram-se bem”, anotou Che em 1º de fevereiro. O próximo passo seria treinar os combatentes para a sobrevivência na selva. Che, então, montou três grupos para uma expedição, prevista para durar 15 dias. No acampamento ficaram apenas quatro combatentes. “A marcha era a principal atividade. Che, exigente com a disciplina, fazia o grupo caminhar em silêncio, mantendo uma distância de 20 metros entre um e outro”, relatou o capitão Villegas. Andar uma dezena de quilômetros sob chuva, em trilhas enlameadas, podia levar o dia todo. Quando o grupo de Che tentou atravessar o rio Grande, o boliviano Benjamin Coronado Córdoba foi levado pela correnteza e morreu afogado. A primeira baixa da guerrilha viera antes do primeiro tiro ser disparado.

A volta foi ainda mais cansativa – a expedição já havia tomado quase um mês. Desde a chegada à Bolívia, Che tinha perdido 20 quilos. Sua barba voltara e ele sofria com ataques de asma, dores nas mãos e pés inchados. No acampamento, sem notícias do resto do grupo, Vicente Rocabado e Pastor Barrera desertaram em 11 de março. A caminho da vila de Camiri, tentaram vender um fuzil e foram denunciados. Presos, falaram da guerrilha. E disseram que o líder era Che Guevara.

As forças armadas bolivianas foram colocadas em alerta. Em março, patrulhas saíram de Camiri para investigar a região. No dia 23, cerca de 40 militares estavam na margem direita do Ñancahuazú, carregando armamento pesado e avançando devagar. Com a água batendo na cintura, os soldados tentavam atravessar o rio quando, por volta das 8h30, um tiro acertou o último homem da retaguarda. Após o estampido seco do fuzil, a selva cuspiu rajadas de metralhadora. Os soldados não viram quem os atingia. A ação, feita por sete guerrilheiros, deixou sete militares mortos, quatro feridos e 14 capturados.

Os prisioneiros foram levados ao acampamento da guerrilha, onde receberam medicação e alimento. No dia seguinte foram soltos – aliviados de três morteiros de 60 milímetros, 16 pistolas Mauser, três submetralhadoras Uzi, dois rifles BZ, dois rádios, duas mulas, um cavalo e alguns pares de botas. “Os soldados em serviço militar, mal treinados e mal armados, quando não foram simplesmente afugentados, sofreram fragorosas derrotas para a guerrilha que parecia, nos dois primeiros meses de conflito, invencível”, afirma o jornalista americano Jon Lee Anderson em Che Guevara – Uma Biografia. Em 10 de abril, um grupo de cerca de 150 soldados apanhou de uma dúzia de guerrilheiros e acabou com dez mortos e 30 prisioneiros. A guerrilha sofreu apenas uma baixa: o veterano capitão Suarez Gayol, ex-ministro da Indústria do Açúcar em Cuba.

Alarmado, o governo boliviano buscou ajuda nos Estados Unidos e nos países vizinhos. De Argentina e Peru e, em menor escala, do Brasil recebeu apoio logístico, equipamentos e informações. Do norte, recebeu mais. “O governo norte-americano promoveu um programa de treinamento para ações de contraguerrilha e forneceu armas automáticas relativamente modernas e outros equipamentos ao Exército boliviano”, diz um relatório do Departamento de Estado americano de maio de 1967. Naquele mês, quatro oficiais e 12 fuzileiros navais chegaram à Bolívia para treinar 600 soldados. Outro documento, de 18 de maio, mostra que os americanos estavam preocupados com o eventual apoio popular aos rebeldes: “Entre eles, há médicos que tentam tratar das crianças em lugarejos destituídos de qualquer outro tipo de assistência”.

Metade a menos

A presença dos militares dificultava o contato da guerrilha com La Paz. Lá, a argentina Tamara Bunke mantinha um esquema de apoio aos homens de Che – era a “rede urbana”. Boa parte da comunicação com a capital era feita pelo filósofo francês Regis Debray (amigo e mensageiro de Fidel) e pelo artista argentino Ciro Roberto Bustos, que costumavam visitar os guerrilheiros. Em abril, com o Exército de prontidão, Debray e Bustos não conseguiam voltar a La Paz. Por causa disso, no dia 17, Che tomou uma decisão que selaria o destino de todos: dividiu a guerrilha em dois grupos, um de avanço e outro de espera. Liderando o primeiro, Che tentaria ocupar o povoado de Muyupampa para, de lá, mandar os dois mensageiros a La Paz. Já a tropa de espera, sob o comando de Joaquín (Juan Vitalio Nuñez, membro do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba), aguardaria perto do povoado de Bella Vista. Che deveria voltar em três dias.

Ao se aproximar de Muyupampa, a tropa de avanço encontrou o jornalista inglês Tom Roth, que insistia em fazer uma entrevista. Apesar do risco, Che aceitou. Em troca, Roth deveria levar Debray e Bustos em seu carro até Camiri, a cerca de 300 quilômetros dali. Esforço inútil. Em 20 de abril, Debray e Bustos foram presos. Após um mês de tortura, o francês acabou confirmando a presença de Che na selva. Já Bustos colaborou desde o primeiro dia, dando preciosas informações e até desenhando o rosto dos guerrilheiros.

Em 25 de abril, o grupo avançado foi atacado pelo Exército. Che anotou: “Um dia negro”. Referia-se à morte de Eliseo Reyes, que havia combatido a seu lado em Cuba. Seguiu-se uma longa retirada pelo norte, na direção oposta ao ponto de encontro com Joaquín. No dia 14 de junho, Che questionou até quando a idade permitiria que ele continuasse a ser guerrilheiro. “Por enquanto, ainda estou inteiro”, escreveu. Era seu aniversário de 39 anos.

Em agosto, Joaquín resolveu sair em busca de Che. Começou a busca na casa de Honorato Rojas, camponês que já havia servido de guia para a guerrilha. Depois de mais de 20 dias andando, o grupo acampou perto da casa de Honorato, em Vado del Yeso. Ao amanhecer de 30 de agosto, Joaquín enviou homens até lá para pedir comida. Honorato prometeu algo para o dia seguinte. Enquanto isso, mandou o filho alertar o Exército. Às 16h do dia 31, Joaquín apareceu e pagou a Honorato pela sopa de milho e pelos pães. Na volta, perto de um rio, os 16 guerrilheiros foram surpreendidos por tiros vindos das árvores. Dez morreram na hora, incluindo Joaquín. Longe dali, sem saber de nada, Che escreveu que o mês de agosto fora “o pior desde o início da guerrilha”. Mas, esperançoso como sempre, considerou que o Exército não tinha aumentado “nem sua eficácia nem sua iniciativa”. Estava errado.

No início de setembro, Che foi em busca de Joaquín. Assim como o companheiro, decidiu ir procurar na casa de Honorato. Durante dias de caminhada margeando o rio Grande, ouviram pelo rádio que os colegas haviam sido emboscados. No início, Che duvidou. Mas a precisão das informações o fez aceitar o fato. As notícias diziam também que a rede urbana em La Paz tinha sido desbaratada. Che percebeu que seus homens eram tudo o que lhe restava e, portanto, o único foco do Exército seria pegá-los. Estava certo.

O grupo mudou de rumo, em direção aos vilarejos de Pucará e La Higuera. Esperavam recrutar gente para a luta e conseguir comida. Em seu diário, Che anotou as dificuldades alimentares daqueles dias: “Urbano [codinome do cubano Leonardo Tamayo Nunes] matou um cavalo (...). Ao meio-dia tomamos seu sangue. De noite, assamos a cabeça e eu comi os olhos e o cérebro. Depois, sopa de frango.”

No dia 26 de setembro, às 3h da madrugada, a marcha recomeçou. Perto de La Higuera, Roberto Peredo caiu morto, atingido por um disparo. Seguiu-se um tiroteio. O saldo foi trágico: três mortos, dois feridos e duas deserções. Che percebeu que o Exército conhecia sua posição e que uma nova emboscada seria questão de tempo. Em Vallegrande, maior cidade da região, estava o quartel da unidade militar treinada para combater a guerrilha: o Segundo Batalhão de Rangers. Mais de 2 mil militares estavam no encalço de Che.

Apenas um homem
Em contraste com a selva que a guerrilha havia enfrentado durante meses, a região próxima a La Higuera tem mata baixa e vegetação rala. Lá, na manhã de 7 de outubro, Che e seus 16 homens encontraram uma velha que caminhava com sua filha. Temendo a delação, os guerrilheiros ofereceram à mulher 50 pesos pelo seu silêncio. A pobre senhora recebeu o dinheiro. E, assim que cruzou com militares, detalhou a posição exata dos barbudos.

Na madrugada do dia 8, o Exército bloqueou todas as rotas de fuga. Voltando de uma inspeção, dois homens de Che avistaram dezenas de soldados no alto do desfiladeiro. O grupo estava encurralado no fundo da quebrada de Yuro: uma garganta de 300 metros de comprimento e menos de 50 metros de largura. Che decidiu esperar a noite para tentar furar o cerco. A silenciosa tensão foi rompida por volta de 13h30, quando o Exército abriu fogo contra os guerrilheiros. Quatro deles caíram mortos. No tiroteio, Che foi atingido e não podia mais andar sozinho. Carregado pelo boliviano Simeón Cuba, ele permaneceu disparando até que um tiro arrancou a carabina de suas mãos. Che e Willy acabaram cercados e rendidos por militares bolivianos. Segundo o relato de um deles, o sargento Bernardino Huanca, o revolucionário teria lhe dito: “Não atire. Eu sou Che Guevara. Valho mais para você vivo do que morto”.

Dos homens de Che, dez escaparam da emboscada. Metade deles seria morta nos próximos dias. Apenas cinco sairiam das montanhas com vida (os bolivianos Guido Peredo e David Veizaga voltariam à luta armada e acabariam mortos em La Paz, em 1969. Apenas os cubanos Benigno, Urbano e Villegas ainda estão vivos). Che, Willy e o peruano Juan Pablo Chang, que também havia sido preso na quebrada do Yuro, foram levados a uma escola em La Higuera. Lá, Che foi interrogado. No dia seguinte, perto das 13h, Willy e Chang foram executados. Pouco depois, naquele calorento 9 outubro de 1967, sentado numa sala com chão de terra, Che foi assassinado pelo tenente Mario Terán com uma rajada de fuzil. Para evitar sinais de execução, não foram dados tiros na nuca ou na cabeça.

As longas garras da águia
Documentos recém-divulgados revelam os bastidores da atuação da CIA na caçada a Che Guevara
“Barrientos comunicou-me que, no dia de ontem, as autoridades bolivianas capturaram dois supostos guerrilheiros (Vicente Rocabada Terrazas e Pastor Barrera Quintana) nas cercanias de Ipita (Santa Cruz). Depois de terem sido interrogados em La Paz, nesta manhã, os dois suspeitos admitiram pertencer a um grupo de 30 ou 40 subversivos, que atuam nas cercanias de Ipita. Rocabada e Barrera confessaram que Che Guevara lidera o bando.” O telegrama ao Departamento de Estado americano, assinado por Douglas Henderson, embaixador dos Estados Unidos em La Paz, carimbado como supersecreto e postado em 16 de março de 1967 às 22h45, é a primeira menção em documento oficial – incluindo qualquer comunicado do governo boliviano –, à possível presença do revolucionário na Bolívia. Che já era um emblema vivo para a esquerda e a CIA (a agência de inteligência americana) o procurava desde o Congo, em 1964, onde ele havia liderado um grupo de guerrilheiros cubanos que tentou derrubar o ditador Joseph Mobutu. Em clima de Guerra Fria, Che e seu exército foram repelidos por bem equipados mercenários da CIA. Dois anos depois da derrota, Che já estava na selva boliviana. A relação estreita entre a CIA e a Bolívia, no entanto, precedia a chegada de Che. Nos anos 60, a agência aumentou sua presença na América Latina, buscando informações sobre Cuba e a influência soviética na região. O presidente René Barrientos cooperava bastante com os agentes dos Estados Unidos – ele chegara ao poder após receber mais de 1 milhão de dólares da CIA. “O dinheiro serviu para encorajar, nas palavras da própria agência, um governo estável inclinado em direção aos interesses americanos”, diz o jornalista americano Tim Wiener em Legacy of Ashes – The History of the CIA (“Legado das cinzas: a história da CIA”, inédito no Brasil). Depois do anúncio da presença de Che na Bolívia, Barrientos procurou o embaixador Henderson, em abril de 1967, para lhe informar que suas tropas estavam seguindo o guerrilheiro. Apesar de ter informações de que Che havia sido morto no Congo, a CIA enviou dois espiões para se juntar aos soldados bolivianos. Um deles era Felix Rodriguez, cubano dissidente que havia tentado derrubar Fidel na malfadada invasão da baía dos Porcos, patrocinada pelos Estados Unidos em 1961. Ele enviou uma série de boletins do campo de batalha – suas mensagens, tornadas públicas em 2004, são o rico testemunho de um confronto encoberto pelo mito. Da vila de La Higuera, Rodriguez falou por rádio com John Tilton, chefe da CIA em La Paz: “Em 8 de outubro de 1967, Che foi capturado depois de um confronto com os Rangers bolivianos”, dizia. Segundo Rodriguez, o alto comando boliviano estava decidindo o destino de Che. “Estou tentando mantê-lo vivo”, reportou. “O que tem sido muito difícil.” Rodriguez disse que, na manhã seguinte, tentou interrogar Che, que estava sentado no chão de uma sala de aula. Tinha pulsos e tornozelos amarrados, o rosto entre as mãos. Segundo o espião, eles falaram sobre o confronto no Congo e sobre o destino dos invasores da baía dos Porcos que haviam sido capturados por Cuba. “O governo executou todos os líderes guerrilheiros que invadiram seu território”, teria dito Che. “Então ele parou com um olhar irônico em sua face e sorriu como se reconhecesse nessa declaração sua própria posição em solo boliviano”, escreveu Rodriguez. A ordem para matar Che veio às 11h50. “Guevara foi morto com uma rajada de tiros à 1h15 da tarde”, relatou Rodriguez, por rádio, a Tilton. “As últimas palavras de Guevara foram: ‘Diga a minha mulher para casar de novo e a Fidel Castro que a revolução vai vencer novamente nas Américas’. Depois, a seu executor, ele disse: ‘Lembre-se: você está matando um homem’.” De La Paz, Tilton telefonou para o quartel-general da CIA nos Estados Unidos. O oficial Tom Polgar atendeu o telefone e, ao ouvir que Che estava morto, perguntou: “Você pode enviar as impressões digitais?” Tilton respondeu: “Eu posso enviar os dedos”. Sob o pretexto de acelerar a identificação do cadáver, as mãos de Che haviam sido cortadas.

Um rosto sem camisetaO leal Willy ficou até o fim ao lado de seu comandante
Se Che Guevara pudesse voltar atrás a respeito de uma, apenas uma coisa que escreveu, talvez riscasse de seu diário um trecho de setembro de 1967: “Minhas únicas dúvidas são sobre Willy: ele pode tirar vantagem de alguns combates para escapar sozinho”. Willy era o apelido de Simeón Cuba Sarabia, um ex-mineiro boliviano de 32 anos, militante comunista que se integrou ao grupo de Che em março de 1967. Os colegas de guerrilha o viam como corajoso e disciplinado. Talvez por causa da natureza reservada de Willy, Che tenha suspeitado de sua lealdade. Não poderia estar mais enganado. Em 8 de outubro, quando Che e seus homens foram cercados, Willy tentou achar um jeito de furar o bloqueio do Exército. Che, que o seguia de perto, foi atingido. Willy voltou e arrastou o companheiro para fora da linha de tiro. Segundos depois, foram cercados novamente. Responderam ao fogo até que um tiro tirou a arma das mãos de Che. Willy novamente o levou para longe dos disparos, colocando-se entre o líder ferido e os inimigos. Exposto, Willy foi atingido vários vezes. Rendido por soldados, Willy confrontou-os: “Este é o comandante Che Guevara. Tenham respeito!” Willy foi amarrado a Che e levado para La Higuera, onde foram presos em salas separadas. No dia seguinte, Willy foi metralhado por três soldados. Antes da execução, ele teria dito: “Estou orgulhoso de morrer perto do Che”. Em 1997, seu esqueleto foi achado na Bolívia, na mesma cova que continha os restos de Che. Assim como muitos dos homens que tombaram na última guerrilha do comandante, hoje Willy repousa ao lado dele, em Cuba.

Saiba mais
Livros

Diário da Guerrilha Boliviana, Che Guevara, Edições Populares, 1980

Com prefácio de Fidel, traz um apêndice com documentos sobre a guerrilha. Uma boa versão do diário na internet, em espanhol, está em www.diariochebolivia.cubasi.cu.

Che - Uma Biografia, Jon Lee Anderson, Objetiva, 1997

Perfil completíssimo, fruto de cinco anos de trabalho. Tem diversos depoimentos de pessoas ligadas a Che – muitas das quais nunca haviam falado sobre o assunto antes.

Vida, Morte e Ressurreição do Che, Reginaldo Ustariz Arze, Brasbol, 2004

O autor boliviano viu de perto – e fotografou – o tratamento dado ao corpo de Che em Vallegrande. A obra pode ser encomendada por e-mail: editorabrasbol@uol.com.br.

Relatório da CIA – Che Guevara, de Maurício Dias e Mario Cereghino (org.), Ediouro, 2007

Tem documentos americanos recém-liberados sobre a caçada a Che Guevara e a identificação de seu cadáver.

Trinta anos para voltarSaiba como foi o reencontro de Che com Cuba
Logo depois de ser executado em La Higuera, no dia 9 de outubro, Che Guevara foi levado de helicóptero a Vallegrande. Lá, seu corpo ficou na lavanderia de um hospital. Entre a dúzia de jornalistas que pôde vê-lo estava o boliviano Reginaldo Arze. “Naquela segunda-feira, quando vi o cadáver do Che, o reconheci facilmente”, afirma. Arze percebeu que o corpo ainda estava quente – o que contrariava a versão oficial de que Che teria sido abatido em combate no dia anterior. O cadáver permaneceu exposto durante toda a terça-feira e, depois, desapareceu. Suas fotos, no entanto, correram o mundo. Para conferir a autenticidade das imagens, Fidel Castro pediu ajuda ao argentino Alberto Granado, que vivia em Cuba e acompanhara Che na célebre viagem de moto pela América do Sul nos anos 50. “Fidel me chamou tarde da noite. Não havia dúvida: era Ernesto. Choramos muito”, disse Granado em entrevista a História em 2005.

Em 15 de outubro, Fidel reconheceu a morte de Che. Ao fim dos três dias de luto oficial, discursou em Havana despedindo-se do companheiro e prometendo preservar-lhe a memória. Assim fez. Primeiro, recuperando o diário de Che. No começo de 1968, Antonio Arguedas, então ministro do Interior boliviano, mandou secretamente a Cuba fotocópias das anotações (as páginas originais permanecem desaparecidas). Em 1º de julho, o livro foi distribuído para a população cubana. Arguedas também fez chegar a Cuba as mãos de Che, que haviam sido cortadas em Vallegrande. Elas as havia recebido no fim de 1967, num frasco de formol. A missão de tirá-las da Bolívia coube ao boliviano Juan Enrique Quiroga. “As mãos estavam cortadas de forma irregular, sugerindo que o corte não fora feito com instrumento adequado. Me pareceram grandes e musculosas”, disse ele à revista Veja em 1997. Após ficar cinco meses com o frasco debaixo de sua cama, Quiroga o levou até Moscou, em janeiro de 1970. De lá, as mãos foram para Cuba, onde estão guardadas no Palácio da Revolução.

O mistério sobre o resto do corpo, entretanto, persistia. Em 1995, o general boliviano Mario Vargas Salinas disse ao jornal The New York Times que Che havia sido enterrado no aeroporto de Vallegrande. Em 28 de junho de 1997, numa antiga pista de pouso, uma expedição de legistas argentinos e cubanos revelou uma vala com sete esqueletos. Um deles estava sem as mãos. Era Che Guevara. Em 12 de julho, seus restos mortais foram recebidos em Cuba. No dia 17 de outubro, Che foi enterrado com honras de Estado em um mausoléu na cidade de Santa Clara.

Revista Aventuras na História

O revolucionário Ernesto Che Guevara


O revolucionário Ernesto Che Guevara

Ernesto Guevara Lynch de la Serna, o Che, nasceu em 14 de junho de 1928 em Rosário, na Argentina. Ele era o mais velho de uma família de cinco filhos de ascendência espanhola e irlandesa.

Embora sofresse de asma desde a infância, ele acabou tornando-se desde cedo um atleta. Jogador de rúgbi, ele foi apelidado pelos colegas de "Fuser" --junção de "El Furibundo" [O irado] com seu sobrenome, "Serna" --devido ao seu estilo agressivo de jogo.

Apesar da vontade de estudar engenharia, Guevara ingressa em 1948 na Universidade de Buenos Aires para estudar medicina.


A mais famosa de suas viagens foi em 1952, ao lado do amigo bioquímico Alberto Granado. Em uma motocicleta, a dupla atravessou vários países da região. O trajeto foi registrado por Guevara em seus "Diários de Motocicleta", que foram traduzidos para o inglês em 1996 e usados como base para um filme dirigido pelo brasileiro Walter Salles, em 2004.

Em 1955, Che se casa com Hilda Gadea e tem sua primeira filha. No mesmo ano, conhece Fidel Castro em uma viagem para o México. Fidel vivia exilado no país, depois da tentativa fracassada de tomar o quartel de Moncada, em Cuba. A empatia entre os dois é imediata.

No ano seguinte, em dezembro, Fidel, Che e mais 80 rebeldes partiram para Cuba. Eles se estabeleceram em Serra Maestra, onde iniciaram uma guerrilha de sucesso, que resultou na queda do presidente cubano Fulgêncio Batista. Em janeiro de 1959, Fidel assumiu o poder.

Fidel, Che e Camilo Cienfuegos --que morreria em 1959-- foram um dos principais líderes da Revolução Cubana.

Guevara assume posição de destaque no governo revolucionário, ocupando, entre outros, o cargo de ministro da Indústria.

Passagem pelo Brasil

No início dos anos 60, Guevara realiza uma série de viagens pelo mundo, visitando países como China e a ex-União Soviética. Em 1961, ele passa pelo Brasil, quando é condecorado pelo então presidente Jânio Quadros com a Ordem do Cruzeiro do Sul.

Decido a propagar os ideais da revolução comunista, até então bem-sucedida em Cuba, Che deixa o país em 1965.

Seu destino é o Congo, na África, e seu objetivo, como ele mesmo disse na época, era "enfrentar o imperialismo em outro fronte". No país africano, ele inicia uma guerrilha armada, com o apoio de alguns rebeldes cubanos, que logo fracassa.

O próximo passo de Che é a Bolívia, que, como quase todos os países latino-americanos na época, vivia sob uma ditadura militar, apoiada pelos Estados Unidos.

No território boliviano, a tática foi a mesma: guerrilha. Sem a ajuda dos camponeses locais e em dificuldades por causa do pequeno número de guerrilheiros, a incursão também fracassa.

No dia 8 de outubro de 1967, Che é capturado por militares bolivianos, que tiveram o apoio da CIA [agência de inteligência norte-americana]. No dia seguinte, 9 de outubro, ele é morto com oito tiros na pequena aldeia de La Higuera, onde seu corpo foi enterrado.

Há dez anos, em 1997, seus restos mortais foram encontrados e transferidos para a cidade de Santa Clara, em Cuba.

Com "El Pais" e agências internacionais


Principais frases de Ernesto Che Guevara

O revolucinário argentino Ernesto Che Guevara, morto na Bolívia
O revolucionário argentino Ernesto Che Guevara foi capturado por militares na Bolívia, que tiveram o apoio da CIA [inteligência norte-americana] em 8 de outubro de 1967. No dia seguinte, ele foi morto com oito tiros na aldeia de La Higuera, onde foi enterrado.

Veja algumas das principais frases de Che Guevara:

"Os poderosos podem matar uma, duas até três rosas, mas nunca deterão a primavera."


"O verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de generosidade; é impossível imaginar um revolucionário autêntico sem esta qualidade."

"No momento em que for necessário, estarei disposto a entregar a minha vida pela liberdade de qualquer um dos países da América Latina, sem pedir nada a ninguém."

"Não há fronteiras nesta luta de morte, nem vamos permanecer indiferentes perante o que acontecer em qualquer parte do mundo. A nossa vitória ou a derrota de qualquer nação do mundo é a derrota de todos."

"Nossos filhos devem possuir as mesmas coisas que as outras crianças, mas eles devem também ser privados daquilo que falta às outras crianças."

"Vale milhões de vezes mais a vida de um único ser humano do que todas as propriedades do homem mais rico da terra."

" Muitos dirão que sou aventureiro, e sou mesmo, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a própria pele para demonstrar suas verdades."

"O importante não é justificar o erro, mas impedir que ele se repita."

"É preciso endurecer, sem perder a ternura, jamais."

"Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução."

"O capitalismo é o genocida mais respeitado do mundo."

"Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais completos; somos mais completos por sermos mais livres."

"Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros."

"Se avanço, siga-me; se me detenho, empurre-me; se retrocedo, mata-me."

"Hasta la vitória, siempre!"

A leitura na vida e na morte do Che


A leitura na vida e na morte do Che
Para Guevara, a leitura foi como um filtro que lhe permitiu dar sentimento à experiência. Um espelho que a definia, dava-lhe forma. Além disso, a leitura serviu como metáfora da diferença entre sua vida política e a pessoal, permanecendo como um resto do passado, em meio à experiência da ação pura, do desprovimento e da violência
Tiago Nery
No poema Lisboa revisitada, Fernando Pessoa escreveu: “(...) só és lembrado em duas datas, aniversariamente: quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste (..)”. Ernesto Che Guevara parece uma dessas pessoas que só são lembradas no aniversário de sua morte. Com freqüência, exalta-se a figura do herói-mártir do voluntarismo revolucionário, do guerrilheiro heróico. No último dia 14 de junho, Guevara completaria 80 anos. Mais uma vez, as poucas referências ao seu aniversário natalício não mencionaram outras dimensões da vida deste ser profundamente complexo e humano.

Guevara passou por várias metamorfoses ao longo da vida, e essas mutações bruscas foram a marca de sua personalidade. Teve muitas vidas simultâneas – a do viajante, a do médico, a do aventureiro, a do crítico social - que se condensaram e se cristalizaram, por fim, em sua experiência de condottiere, como gostava denominar-se. No entanto, pouco se escreveu sobre a paixão que tinha pela leitura, que remonta à sua infância, e que o acompanharia até seu assassinato na Bolívia.

De acordo com o próprio Guevara, seu interesse pela leitura começou ao tentar ocupar-se durante os ataques de asma, quando seus pais o obrigavam a ficar em casa, fazendo inalações prescritas por eles. Devido às crises, a mãe ensinou-o a ler, pois muitas vezes ele não pôde ir à escola. A partir de então, Guevara se transformou num leitor voraz. Alberto Granado, o amigo que o acompanhou na viagem pela América do Sul, ficou intrigado quando descobriu que o jovem Ernesto “já estava lendo Freud, gostava da poesia de Baudelaire e lera Dumas, Verlaine e Mallarmé em seu idioma original, bem como a maioria dos livros de Émile Zola, os clássicos argentinos, como o épico Facundo de Sarmiento, e as mais recentes obras de William Faulkner e Jonh Steinbeck”. [1]

Ao longo de sua trajetória, Guevara procurou unir a leitura à vida. Como leitor, buscava completar o sentido de sua vida por meio de imagens extraídas das leituras que fazia. Assim, viveu a partir de certos modelos de experiência que leu e procurou repetir e realizar; encontrou em cenas lidas um modelo ético de conduta, a forma pura da experiência. Cortázar escreveu um conto, sobre uma passagem na sua vida, em que el Che, ferido, pensando que está à morte, lembra-se de um relato que leu. Assim escreveu em Passagens da guerra revolucionária: “Na mesma hora comecei a pensar na melhor maneira de morrer, naquele minuto em que tudo parecia perdido. Lembrei-me de um velho conto de Jack London, em que o protagonista, apoiado no tronco de uma árvore, toma a decisão de acabar a vida com dignidade, ao saber-se condenado à morte, por congelamento, nas regiões geladas do Alasca. É a única imagem de que me lembro”.

A vida de Guevara foi marcada pela constante tensão entre o ato de ler e a ação política: a leitura, na figura sedentária do leitor e prática, do guerrilheiro que avança. Mais que paixão, a leitura era para ele uma dependência. “Minhas duas fraquezas fundamentais: o fumo e a leitura”. E leitura feita em situações de perigo, em situações extremas, fora de lugar, em circunstâncias de desorientação, de ameaça, de morte. A leitura opondo-se a um mundo hostil, como restos ou lembranças de outra vida. No excelente ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, o escritor Ricardo Piglia define esses momentos do guerrilheiro nos intervalos da marcha contínua: “essas cenas de leitura seriam o vestígio de uma prática social. Trata-se de uma pegada - um tanto borrada -, de um uso do sentido que remete às relações entre os livros e a vida, entre as armas e as letras, entre a leitura e a realidade". [2]

Existem duas fotos extraordinárias da revolução cubana. Numa Che lia uma biografia de Goethe num acampamento guerrilheiro. A outra captou o momento em que lia na Bolívia, em cima de uma árvore, em meio à desolação e à experiência terrível. Trata-se de Guevara como o último leitor
Para Guevara, a leitura foi como um filtro que lhe permitiu dar sentimento à experiência. Um espelho que a definia, dava-lhe forma. Além disso, a leitura serviu como metáfora da diferença entre sua vida política e a pessoal, permanecendo como um resto do passado, em meio à experiência da ação pura, do desprovimento e da violência. Isso já era percebido no período da luta em Cuba. Em um testemunho sobre a experiência da guerra de libertação cubana, alguém afirma, referindo-se ao Che: “leitor incansável, abria um livro quando fazíamos uma parada, ao passo que nós, mortos de cansaço, fechávamos os olhos e tratávamos de dormir”. Há uma foto conhecida dessa época, em que lia uma biografia de Goethe num acampamento guerrilheiro. Outra foto extraordinária, captou o momento em que lia na Bolívia, em cima de uma árvore, em meio à desolação e à experiência terrível. Trata-se de Guevara como o último leitor.

Ademais, costumava registrar em seu diário a experiência pessoal e a coletiva a qual estava inserido inteiramente. Escrevendo, Guevara fixou a experiência em si, o que permitiria em seguida ler sua própria vida como se fosse a de outro, e reescrevê-la. No entanto, o Diário da Bolívia é excepcional, por não ter sido reescrito.

Na marcha da história, o leitor sobrevive em Guevara, sob o eterno conflito entre ação do ser político e a leitura do ser isolado, sedentário, reflexivo. Há um relato sobre o primeiro combate da guerrilha boliviana em que estava lendo estendido em sua rede, enquanto esperava o momento exato do início à emboscada. Ainda no país andino, quando por fim é capturado, no dia 8 de outubro de 1967, Che, sem forças, carregava seus livros, dos quais não abriu mão, enquanto todos os outros já se haviam desfeito daquele peso supérfluo.

Nos momentos finais de vida, uniram-se o Che leitor e o Che político, talvez porque estiveram juntos desde o início. Enquanto estava preso na escolinha de La Higuera, aguardando ser assassinado, Julia Cortés, professora e única a assumir uma atitude solidária com Ernesto, foi levar-lhe de casa um prato de comida. Quando entrou na sala, encontrou o Che jogado no chão, ferido. Então – e estas seriam suas últimas palavras - Guevara mostrou-lhe uma frase escrita na lousa e disse que a mesma não estava correta; com enfática perfeição, falou: “falta o acento”. A frase era “yo sé leer” (‘eu sei ler’). Por uma dessas ironias do destino, como um oráculo, uma cristalização quase perfeita, a frase que Guevara corrigiu tinha a ver com leitura.

Como afirma Ricardo Piglia, Guevara “morreu com dignidade, como o personagem de Jack London”. Morre o homem. Ficam suas idéias, sua determinação, seu exemplo.
(13/11/2008)

[1] ANDERSON, JL. Che Guevara: uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

[2] PIGLIA, R. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006


Che Guevara - O herói de muitas causas

Descendente de um vice-rei do México, Ernesto Guevara de La Serna encarna o espírito revolucionário, e sua imagem segue cultivada até mesmo sem grande conhecimento de seu legado.
por Pascal Marchetti-Leca
Ernesto "Che" Guevara, em Cuba, 1964
Argentina, 1928. Uma embarcação descia o rio Paraná. A bordo, Ernesto Guevara Lynch e Célia de La Serna, sua jovem esposa grávida. Viajavam para Buenos Aires, onde ela planejava parir. Mas foi surpreendida pelas dores do parto, em Rosário de La Fé. O casal desembarcou com pressa.

Momentaneamente, alojaram-se no número 480 da rua Entre Ríos, onde, num quarto improvisado, o menino veio à luz. Recebeu o nome do pai, Ernesto. A história, em seus anais, o registrou de bom grado como o Che. Até aquele momento, sua única herança havia sido um nascimento complicado.

Os Guevara não demoraram para deixar a parada obrigatória. Retomaram o caminho do Atlântico e se fixaram, durante algum tempo, em San Isidro, perto de Buenos Aires, onde Ernesto Guevara Lynch trabalhou como engenheiro civil. Desportista assumida, Célia logo se inscreveu no clube náutico da cidade e cultivou o hábito de levar o filho para as margens do rio da Prata. Numa manhã de maio de 1930, ao sair da água, o garoto manifestou sintomas de resfriado. Contraiu, em seguida, uma pneumonia que degenerou em recorrentes crises de asma. "no mês de maio faz um clima glacial e um vento forte, minha mulher tinha ido banhar-se no rio com nosso filho ernesto. Quando fui procurá-los, a fim de levá-los ao clube para o café da manhã, encontrei o menino com o calção de banho, já fora da água, (...) Trincando os dentes.

Ela ainda era inexperiente e não se dera conta de que as mudanças de tempo se mostravam perigosas naquela estação", comentou o pai.

Os problemas de que o menino padeceu, dali para a frente, condicionaram as migrações da família, em busca de um clima capaz de devolver a saúde àquele que então era chamado de Ernestito ou de Tetê. Em 1933, após alguns anos de nomadismo, os pais decidiram fixar-se em Alta Gracia, ao pé da Serra Chica, perto de Córdoba. Foi lá, numa cidade fundada pelos jesuítas, que o menino cresceu. Mas o ar puro de Alta Gracia, que atraía turistas e tísicos, não bastou para curá-lo. Ainda assim, as crises ficaram mais espaçadas. A débil saúde o impediu de freqüentar regularmente a escola. Preocupada com sua instrução, Célia improvisou-se na função de preceptora: "Ensinei meu filho Ernesto a ler. Ele não podia ir à escola por causa da asma. Freqüentou normalmente a segunda e a terceira séries. Compareceu às aulas da quinta e da sexta somente quando podia. Os irmãos traziam os deveres, e ele trabalhava em casa". Culta, Célia o iniciou na literatura. O garotinho, invariavelmente recluso na biblioteca familiar e nos cantos de um aposento qualquer, mergulhava até onde podia na leitura. Em torno dele, todos se preocupavam. "Então, perdido por perdido, decidiu decretar a própria liberdade e, como um pássaro que abre o cadeado da gaiola, o Che, até então confinado no quarto, descobriu o exterior, a natureza", recordou a irmã Anna-Maria.

Para superar a debilidade de sua constituição, os pais de Ernesto o ensinaram a amar o esporte. Ele se dedicou depois disso a exercícios intensos: equitação, futebol, alpinismo, natação. Aprendeu a vencer suas limitações. A vontade foi seu verdadeiro remédio. Cheio de energia, passou a sair de casa, mas trocava a companhia dos estudantes enfatuados, perfumados e emproados de sua condição social pela dos filhos dos proletários. Indignado com as condições de vida dos amigos índios, cujas famílias amontoavam-se num único cômodo, ele já procurava organizar - ao menos mentalmente - aqueles que a pobreza humilhava. E, enquanto o pai apoiava a República Espanhola, Tetê abria a residência familiar aos seus amigos mais pobres.

Os Guevara mantinham sempre a mesa franqueada. E seria assim também em Córdoba. Ali, sua residência transformou-se visivelmente numa casa do povo. Ernesto tornou-se amigo dos irmãos Granado: Tomás, Gregório e, sobretudo, Alberto, que, preso por ter participado de uma manifestação proibida de estudantes, exercia sobre ele um verdadeiro fascínio. "Sair à rua para ser mobilizado... logo eu, por quem ninguém dava uma figa e que nem podia andar!", dizia. De criança frágil, Ernesto transformou-se em adolescente robusto. Apaixonou-se pelos jogos competitivos e, quando não estava lendo, jogava tênis, golfe e bola basca, sem descurar a natação.

Os irmãos Granado o estimularam a praticar um esporte havia pouco tempo importado da Inglaterra, o rúgbi, e os pais passaram a ter de freqüentar os estádios, estimulando as jogadas de corpo, lamentando os saques errados. Por seus toques, os camaradas passaram a aclamá-lo como o Fuser, contração provocativa de Furibundo de la Serna! Suas irmãs e irmãos Célia (1929), Roberto (1932), Anna-Maria (1934) e Juan-Martin (1934) mais tarde contariam detalhada e prazerosamente suas façanhas.

No início de 1947 - meses depois do acesso de Juan Perón ao poder -, Ernesto matriculou-se na escola de medicina de Buenos Aires. "Quando decidi ser médico (...), a maior parte dos princípios que tenho hoje como revolucionário ainda não compunham meus ideais. Queria vencer na vida, como todo mundo, sonhava ser um pesquisador célebre... naquele momento isso era apenas um projeto pessoal", confessou ele mais tarde. Mas a universidade que Ernesto de fato apreciava era a rua, suas vielas e semblantes. Ele teria uma oportunidade de experimentar o exercício da medicina in situ. Foi quando, orgulhoso de seu título de doutor, Alberto Granado lhe propôs juntar-se a ele na sierra, no leprosário de San Francisco del Chanar, para o qual acabara de ser nomeado. Não haveria outra chance como aquela.

Ernesto improvisou um motor em sua bicicleta. Colocou na valise algumas roupas e um livro de Nehru, A descoberta da Índia. E partiu para a exploração que seria apenas uma forte antevisão de sua vida posterior.

Dois anos depois, ambos concretizariam um projeto mais ambicioso. Empreenderam um périplo de sete meses através do cone sul-americano, após muita hesitação sobre o destino de sua viagem. "Inicialmente pensamos em ir à Europa, o berço da civilização de que éramos, como argentinos, produto. A Grécia, a Itália, a França, país da Revolução, cuja língua Ernesto falava. E também a Espanha, nossa pátria-mãe de qualquer forma. Ou ainda o Egito dos faraós e das pirâmides? (...) Mas, no fundo, Ernesto estava mais atraído pelo nosso próprio continente. Partir em busca de nossas raízes latino-americanas...", recordou Alberto.

No dia 29 de dezembro de 1951, montaram sobre uma potente moto Norton, a Poderosa II (a Vigorosa), e percorreram os Andes numa bela e realística peregrinação que lembrava a busca pela iniciação. Chile, Peru, Colômbia... pontos em que agonizavam revoluções tradicionais que um certo Fidel Castro reavivaria. Em julho de 1952, os companheiros de estrada se separaram. Fiel à promessa que fizera à mãe, Ernesto voltou a Buenos Aires para concluir os estudos. Obteve o diploma de médico em junho de 1953. As sucessivas escapadas, contudo, tinham acabado de forjar sua consciência progressista. Os sonhos do jovem prático tinham se transformado em projetos políticos. Na estação de General Belgrano, a que o acompanhara para uma nova partida, Célia viu o trem distanciando-se. Da janela, herdeiro de seus sonhos igualitários, o filho gritou: "Aqui vai um soldado da América!".

Ernesto corria para os combates imaginados. Ele atravessou a Argentina, a Bolívia, o Peru, o Equador. Passou uma temporada na Guatemala, onde conheceu a militante Hilda Gadéa, com quem, mais tarde, se casou. Na Cidade da Guatemala, apoiou a reforma agrária de Jacobo-Arbenz-Guzman e, quando este depôs as armas, seguiu para o México a fim de encontrar os revolucionários cubanos exilados. Foi em julho de 1955 que teve o primeiro encontro com Fidel Castro. Este "acabara de purgar 22 meses de prisão, por causa do ataque ao quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953, e devia sua liberação à imprudente anistia decretada pelo ditador Fulgencio Batista. O jovem advogado viajara imediatamente para o México, com um fim preciso: ali organizar a luta insurrecional contra a ditadura de Batista", descreveu o escritor Jorge Castañeda.

Esse encontro selou os dois destinos. Aconteceu na casa de Maria Antonia Sanchez Gonzalez, uma amiga próxima dos rebeldes cubanos. Os dois homens se observaram, julgaram um ao outro. Um, em seu diário, mandou tudo para o diabo: "É um acontecimento político ter conhecido Fidel Castro, o revolucionário cubano. Ele é jovem, inteligente, seguro de si e tem uma audácia extraordinária. Penso que simpatizamos um com o outro". Fidel reconheceu: "O Che tinha uma formação revolucionária mais sólida que a minha, ideologicamente falando. Do ponto de vista teórico, estava mais bem preparado, era um revolucionário mais adiantado que eu".

Para terminar, o Che - este era o sobrenome de fato que os mexicanos lhe haviam dado, em função de, como bom argentino, pontuar todas as suas frases com a interjeição - decidiu seguir Fidel na sua luta pela libertação de Cuba. Acrescentou, contudo, a seu juramento uma única reserva: "Retomar minha liberdade de revolucionário depois do triunfo da Revolução. Se o triunfo acontecer".

O pacto foi fechado. Che Guevara foi recrutado pelas tropas rebeldes. A partir de 1956, fez o curso de guerrilheiro. No final de agosto, pediu licença à esposa e à filhinha que ela lhe dera para preparar o desembarque na costa cubana. "Eu analisara os caminhos da América. Estive entre os maias, na Guatemala, para descobrir uma revolução. Lá, eu me encontrei com um camarada que se tornou meu guia. Em conjunto vivenciamos a idéia de defender aquele pequeno país contra os ianques.

Agora, para mim, chegou a hora de combater, dessa vez em outro país (...), para derrotar a exploração e a miséria. Com a vontade de construir um mundo melhor, no qual você viverá", explicou ele à filha.

A estrela dourada
Em 26 de novembro, com uma carga além do razoável, o Granma largou as amarras. A sublevação popular estava prevista para o dia 30, em Santiago de Cuba. Mas, surpreendido por uma tempestade, o velho barco encalhou no charco de Beliz, longe da praia Niquero e do dispositivo de recepção que estava previsto. "Não foi um desembarque, foi um naufrágio", abreviou Ernesto Guevara. Para escapar do massacre, só havia uma saída: a Sierra Maestra. O desastre estava claro. Era um maciço hostil e selvagem. Não havia como prosseguir a luta e, menos ainda, vencer sem conquistar o apoio dos nativos. "Nós adiantamos a reforma agrária como ponta de lança do exército rebelde", resumiria o Che.

De fato, graças aos camponeses, que conheciam perfeitamente o terreno, os barbudos retomaram os contatos com os grupos urbanos. Reorganizaram as tropas e retomaram as ofensivas. Em 17 de janeiro de 1957, atacaram o primeiro alvo: o quartel de La Plata. O Che semeou confusão nas fileiras inimigas, correndo, a descoberto, para incendiar um hangar. Sua conduta heróica fez com que fosse condecorado com o grau de comandante da guerrilha por Fidel Castro, que pregou em seu gorro a legendária estrela dourada de José Martí. Em maio de 1958, Fidel Castro reagrupou seus homens e redistribuiu funções. As colunas do Che tomaram Santa Clara, último bastião da ditadura antes da capital, que, em 3 de janeiro de 1959, caiu em mãos dos rebeldes. No sul, o próprio Fidel marchou sobre Santiago.

Os insurretos tinham vencido. A revolução estava em marcha. Proclamado "cidadão cubano de nascimento", Ernesto Guevara foi nomeado para a direção do Banco Nacional de Cuba (novembro de 1959), depois para o Ministério da Indústria (fevereiro de 1961).

A nacionalização das companhias petrolíferas e dos bancos americanos instalados na ilha pôs fogo na pólvora entre o novo regime e Washington. No Congresso da Juventude Latino-americana, que se reuniu em Havana, em 8 de agosto de 1960, o Che terminou seu discurso gritando: "Cuba, sim! Ianques, não!", slogan que encontraria eco retumbante em todos os campi universitários sul-americanos. Foi, contudo, um desafio além do suportável. Os Estados Unidos decretaram um embargo parcial do comércio com Cuba. O então presidente, Dwight D. Eisenhower, rompeu relações diplomáticas. O desembarque preparado pelos Estados Unidos, com o objetivo de trazer os cubanos de volta à razão, aconteceu finalmente em 17 de abril de 1961. Mas os que o promoveram, refugiados cubanos patrocinados pelos serviços secretos americanos, atolaram no pântano da praia Giron, na baía dos Porcos, e a tentativa de recuperação da ilha abortou miseravelmente.

O Che, contudo, estava exasperado pelos adiamentos sucessivos do governo cubano em matéria de reformas. Pouco a pouco, foi se distanciando de Castro: "Fidel, o rei sem arrogância nem cerimônia, sem porte nem distância, como aquele Luís XII da Renascença que recebia o embaixador Maquiavel sem botas. O país é sua castelania, o Estado, seu patrimônio. Ele o administra como um latifundiário a sua fazenda. Proprietário supremo, senhor do tempo e do espaço, alimenta seus sargentos, seus prebostes, seus guardas florestais; oficiais e secretários regionais são os senhores feudais, presidentes e ministros, seus ajudantes de campo".

Ernesto, então, passou a viajar. Muito. Tornou-se o advogado dos países do Terceiro Mundo e o mensageiro da revolução no estrangeiro. Ele principalmente representou Cuba na primeira conferência internacional de comércio, em Genebra. Disciplinado, esteve em Moscou para a celebração do 47.o aniversário da revolução comunista.

Visitou os países africanos em rota de distanciamento com o Ocidente: Argélia, Mali, Congo, Guiné, Daomé e Gana, onde disse claramente que "a África, a América Latina e a Ásia deveriam se unir com os países socialistas para lutar contra o imperialismo".

Escudo sob o braçoEm 24 de fevereiro de 1965, por ocasião do segundo seminário afro-asiático, ele pregou, em seu famoso "discurso da Argélia", que "os países socialistas têm o dever moral de erradicar sua cumplicidade com os países exploradores do Ocidente".

Castro sapateou, Moscou fez careta. Em 14 de abril, ele apareceu em público pela última vez em Havana. E, ao fim de uma entrevista de dois dias com Fidel Castro, desapareceu. Rapidamente o mistério alimentou boatos. Indagavam se estaria internado, se fugira, se fora fisicamente eliminado. A verdade era outra. O Che assim explicou a situação a seus pais: "Retomei meu caminho, com o escudo sob o braço.

(...) Acredito na luta armada como única solução para os povos que querem se libertar, e estou sendo coerente com minhas crenças". Em 3 de outubro, Castro, que previra dias sombrios para o Che, tornou pública sua carta de adeus endereçada aos cubanos antes da partida. Estrategista, com esse ato inviabilizou a eventualidade de uma retratação do único homem que, caso retornasse, poderia fazer sombra ao seu poder.

O comandante tinha escolhido o Congo "para acender [um] Vietnã" na África. Mas, como ele próprio confessaria, o episódio congolês foi "a história de um fracasso". O insubmisso retornou clandestinamente a Havana e, a partir de uma fazenda de Pinar del Rio, fomentou a guerrilha da Bolívia. Ele havia previsto que a cordilheira dos Andes logo se transformaria na Sierra Maestra da América Latina. Na manhã de 8 de outubro de 1967, nas quebradas do Yuro, 327 soldados perseguiam 17 rebeldes extenuados. O Che foi capturado. Com seus companheiros, foi trancafiado na pequena escola de adobe de La Higuera. No dia seguinte, o presidente, general René Barrientos - atendendo orientação da CIA, a agência americana de informação - telegrafou a ordem de execução daquele que, segundo o jornalista Régis Debray, "entrou na lenda para escapar de um impasse!".

-Tradução de Roberto Espinosa

Cronologia1928
14 de junho: nascimento na Argentina

1947
Matriculou-se na escola de medicina de Buenos Aires

1951
29 de dezembro: partiu com Alberto Granado para a viagem pelos Andes

1953
Obteve o diploma de médico

1955
Primeiro encontro com Fidel Castro

1957
Janeiro: destacou-se no ataque ao Quartel de La Plata e foi condecorado com o grau de "comandante"

1959
Novembro: com o triunfo da revolução, foi nomeado para a direção do Banco Nacional de Cuba

1961
Fevereiro: indicado para o Ministério da Indústria

1965
14 de abril: última aparição pública em Havana

1967
9 de outubro: execução na Bolívia

Como se fabrica uma lenda.Com o olhar, Ernesto Guevara desafiou o suboficial encarregado de matá-lo. "Atire, não tenha medo, atire!".
Morreu com os olhos abertos. Em circunstâncias que, por força da situação extrema, jamais serão completamente esclarecidas. Os restos mortais do Che foram transportados para o hospital Nossa Senhora de Malta de Vallegrande. Mas, antes de expor o corpo à visitação dos bolivianos, as autoridades deliberaram embelezá-lo. "Ele foi lavado, vestido e preparado segundo as indicações do médico legista, porque nós devíamos provar sua identidade, mostrar ao mundo que o Che fora vencido. (...) Era necessário não deixar nenhuma dúvida possível sobre sua identidade, pois, se ele fosse apresentado como estava, sujo, depauperado, esfarrapado, hirsuto, as pessoas ficariam com dúvidas", explicou o general Prado-Salmon.

Repentinamente, o rebelde andrajoso foi elevado a profeta fulminado. "A metamorfose foi completa: o homem humilhado, em farrapos, furioso, do dia para a noite foi transformado no Cristo de Vallegrande: seus olhos límpidos, grandes e abertos, refletiam a quietude do sacrifício consentido. O exército boliviano cometeu seu único erro tático: após arrebatar seu mais espetacular troféu de guerra, ele transformou o revolucionário extenuado, o homem em apuros do Yuro, atolado numa incontestável derrota, o olhar assombrado pelo terror e a aflição, no Cristo glorioso, símbolo deslumbrante da vida após a morte", comentou Jorge Castañeda. Tão crística quanto a imagem do Che como o comandante vitorioso sob seu gorro estrelado. A partir da foto realizada pelo fotógrafo cubano Alberto Korda, o editor italiano Feltrinelli produziu um cartaz que daria volta ao mundo. "As primeiras fotos apareceram durante os acontecimentos de outubro em Turim. Seriam vistas em seguida na frente das marchas de estudantes das Universidades Columbia e de Nova York e das manifestações de massas do Quartier Latin, em Paris. (...) Sua imagem seria brandida como um exorcismo diante dos tanques soviéticos que rodavam pelas ruas de Praga. E, reunidos sob os estandartes com a sua figura, na praça colonial e pré-colombiana de Tlatelolco, muitos seriam abatidos pelas balas do exército mexicano".

A foto do Che, ainda hoje, tem um valor emblemático. Ela simboliza a hostilidade e a resistência a todas as formas de imperialismo. Mas, por uma ironia da história, na profusão de cartazes com a sua imagem, esse "místico do impossível" não contribuiu também para a prosperidade de numerosas empresas capitalistas?

Pascal Marchetti-Leca é professor na Universidade da Córsega e autor de Innominata (Dcl, 2001).

Revista Historia Viva

Nenhum comentário:

Postar um comentário



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...