Jesus o Bom Pastor

Jesus o Bom Pastor

09 setembro 2010

Resenha crítica do livro Marxismo e Geografia, de Massimo Quaini (editora Paz e Terra, 1979, tradução de Liliana Lagana Fernandes).



José William Vesentini (*)

Publicado originalmente na Itália em 1974, este livro se insere no debate então em voga sobre a “crise da geografia”. Não podemos esquecer que inúmeros autores, desde pelo menos o final dos anos 1960, procuravam explicar essa crise sob diferentes perspectivas e ao mesmo tempo propondo diversos caminhos de renovação para esta disciplina. Apenas para citar alguns poucos exemplos, podemos lembrar das obras já clássicas de David Harvey, Paul Claval e Yves Lacoste (1), estes dois últimos por sinal mencionados no primeiro capítulo deste livro de Quaini. Num certo sentido, como mostraremos a seguir, Quaini pretendeu se contrapor à interpretação lacosteana sobre a “crise da geografia” e a necessidade de construir uma geografia crítica alicerçada  não apenas no marximo (que segundo Lacoste supervaloriza o tempo em detrimento do espaço), mas também no anarquismo e em pensadores pós-modernos como por exemplo Foucault. Para o comunista Quaini só o marxismo-leninismo basta, não sendo necessário recorrer e nenhum outro pensamento crítico – se é que ele admite que isso exista. 

Quaini pretendeu com esta obra dar uma resposta incisiva a essa crise, que, ao mesmo tempo, implicasse num caminho a seguir. Seu argumento, em síntese, é extremamente simples: que essa crise só existe porque a geografia não incorporou o marxismo; e que nos escritos de Engels e principalmente de Marx podemos encontrar “respostas” ainda atuais e pertinentes, e não superadas, para a atual crise ambiental ou ecológica e para a (re)ordenação dos territórios. O marxismo em suma, evidentemente que pela leitura (ortodoxa e até mecanicista) de Quaini, seria o redentor da geografia. Ele denega a crítica que Lacoste fez ao marxismo (2) afirmando que existe sim uma geografia, embora não com este rótulo, em Marx e Engels:

Nas páginas que se seguem nos propomos demonstrar que no materialismo histórico a dimensão espacial não é de modo algum sacrificada pela dimensão temporal: ambas representam uma componente que não pode ser suprimida do original historicismo de Marx, que nasce da crítica radical da concepção idealista da história e, em particular, do idealismo hegeliano no qual, como vimos, mesmo os fatos geográficos mais “terrestres” vinham trasfigurados no “céu” da Idéia. (Quaini, p.35).

O Autor parte de uma concepção epistemológica do seu então camarada de partido, Lucio Colletti (3), que afirma que o método marxista (sic!) tem como núcleo vital a união entre teoria e práxis, ou melhor, entre teoria e história. Trata-se, explica Quaini,  da afirmativa de Marx segundo a qual “a anatomia do ser humano seria a chave para se compreender a do macaco e não vice-versa”, que o Autor chama de “método regressivo”, no qual o presente explicaria o passado (4). Em suas palavras:

“Não faço história do nascimento do capital voltando as costas ao presente para voltar àquele momento em que ele está a ponto de aparecer mas ainda não existe (e, portanto, seguindo simplesmente a série cronológica). Mas faço história do passado partindo do presente como sendo o único real (...) Portanto, não será possível, em conclusão, história  sem teoria, isto é, sem ciência (das disciplinas “morais”) que não proceda do sentido vivo e marcante da diversidade das épocas ou que esqueça, de algum modo, as distinções entre as várias formações histórico-sociais”.  (L. Colleti, apud Quaini, p.21. Os grifos são do original).

É um livro pleno de citações, principalmente de Marx e Engels – e eventualmente de um ou outro marxista –, que perfazem no mínimo uns 70% do texto total. Citações que invariavelmente procuram mostrar uma preocupação dos clássicos do marxismo com o espaço geográfico, com a chamada crise ambiental, com o ordenamento racional do território. Não apenas uma preocupação, mas até mesmo uma aguda percepção avant la lettre dos nossos atuais problemas ambientais ou ecológicos e, mais ainda, de como eles poderiam ser equacionados de forma inapelável. Um escopo pretencioso, sem dúvida, embora facilitado pelo verdadeiro método de Quaini, que é o pinçar aqui ou ali determinados trechos, em várias obras  de Marx e de Engels, que comprovem essa  tese. Afinal, usando esse método poderíamos “demonstrar” qualquer ponto de vista num autor, ou, mais ainda, numa doutrina com vários expoentes, principalmente quando dispomos de inúmeras e variadas obras para fazermos nossa seleção. Poderíamos, com esse método, argumentar que Marx era totalitário avant la lettre como também que ele seria democrático e pluralista. Poderíamos “provar” tanto que ele era um feminista (também avant la lettre) como que foi um típico machista e moralista vitoriano. Não é usando um método semelhante que vários charlatões procuram evidenciar a existência de uma “previsão” da crise financeira de 2008 (ou a de 1929, ou a morte de um papa ou de um aiatolá, e por aí afora) em Nostradamus ou em qualquer outro vidente do passado remoto? Mas sem dúvida que Quaini nada tem de embusteiro. É um acadêmico sério que, pelo menos neste livro, se descortina enquanto geógrafo e marxista convicto, alguém que acredita sinceramente nessa sua questionável tese. O problema é que ele foi longe demais na ortodoxia, na crença nas idéias de Marx e de Engels (como se elas fossem coerentes e invariáveis!) enquanto “verdades reveladas”, como uma doutrina afinal. É um livro religioso no sentido lato do termo, uma obra que no final das contas procura demonstrar que a “salvação” da humanidade (e do planeta Terra; e também a solução para a “crise da geografia”) está contida nos ensinamentos daqueles dois clássicos do século XIX.

É inegável que alguém poderia, de forma perfeitamente legítima, buscar subsídios em Marx e Engels para todos esses assuntos e mesmo para alguns outros: crises econômicas, desenvolvimento desigual, pobreza e exclusão, etc. Mas encontrar subsídios – que também poderíamos extrair, dependendo do tema, em Keynes, em Weber, em Kropotkin, em Aristóteles ou em Kant, algumas vezes mais apropriados do que em Marx ou Engels – não quer dizer propalar “verdades inquestionáveis” ou uma única interpretação aceitável, tal como faz Quaini. Sinceramente, não sei se ele escreveu este livro mais como geógrafo (isto é, como acadêmico ou cientista preocupado em explicar a “crise da geografia” e ao mesmo tempo os desequilíbrios territoriais e ambientais) ou tipicamente como um militante do partido (ou seja, enquanto um manifesto do PCI que usa a “crise da geografia” como pretexto para desancar outras alternativas – principalmente a neoanarquista de Lacoste – e reafirmar os dogmas da sua doutrina, numa conotação mais política do que acadêmica). Talvez uma mistura das duas coisas, apesar de a segunda alternativa ser bem mais evidente. Mas essa natureza militante no mal sentido do termo (demasiado corporativista e facciosa, por isso mesmo pouco crítica) e até meio panfletária do texto de Quaini não lhe retira certos méritos. Existem alguns bons insights no livro, como também um elogiável esforço para escavar no pensamento marxiano algumas idéias relevantes sobre as relações entre sociedade moderna e natureza.

No que se refere às explicações sobre a  “crise da geografia”, suas causas ou fatores explicativos e sua possível resolução, o livro de Quaini – em comparação aos de outros autores desse mesmo período – pode ser considerado como medíocre. Ele não enxerga minimamente as razões dessa crise, os seus verdadeiros motivos. Ele sequer coloca as interrogações pertinentes sobre esse tema: no que consiste essa crise, por que, quando e como ela se iniciou? Ao invés, ele apenas se refere a uma “insatisfação” dos geógrafos com a sua disciplina, como se a crise se resumisse a isso. Na verdade, sua única preocupação é a de validar ou legitimar (poderíamos até dizer: sacralizar) o marxismo. Suas referências ao que foi essa crise, ao seu contexto histórico real (e não apenas frases estereotipadas sobre o capitalismo em geral, inclusive sem distinguir aquele do século XIX do atual), são precárias. Mas é um bom livro – pelo menos aceitável academicamente (como uma possível dissertação de mestrado, por exemplo) – sobre as idéias marxianas a respeito da natureza e da ação antrópica na sociedade moderna ou capitalista. É visivelmente inferior à famosa tese de doutorado de Alfred Schmidt sobre o conceito de natureza em Marx (5), algumas vezes mencionada por Quaini. (Mas com a diferença que Schmidt enxerga várias concepções diferentes de natureza em Marx – por exemplo, uma em O Capital, outra na Ideologia alemã; isso sem falar que na Dialética da Natureza, de Engels, aparece uma outra compreensão diferente das de Marx conforme demonstramos numa obra onde também abordamos este assunto (6). Quaini, por sua vez, reduz tudo a uma só leitura, como se existisse uma concepção unívoca de natureza nos clássicos do marxismo). Mas não deixa de ser um estudo bastante aceitável (embora um tanto simplificador na medida em que procura evitar qualquer aporia, qualquer desarmonia de leitura nas obras desses clássicos) como uma monografia sobre as idéias de Marx e Engels a respeito das relações entre sociedade moderna e natureza.

O próprio título do livro, Marxismo e Geografia, é de certa maneira inapropriado. Pois um estudo mais efetivo sobre essa vinculação deveria ir além dos clássicos, embora evidentemente os incorporando, partindo deles. Deveria passar pelos marxismos do século XX – desde Gramsci e Lukács até Sartre, Merleau-Ponty e Lefebvre, sem esquecer Rosa Luxemburgo e os pensadores da Teoria Crítica – e não ficar tão somente no século XIX. [Por sinal, causa estranheza a quase completa – a não ser numa referência de duas ou três linhas, que nenhuma importância têm no livro – omissão de Antonio Gramsci e Henri Lefebvre nesta obra de Quaini. Afinal, Gramsci foi um dos fundadores do PCI e analisou as desigualdades regionais na Itália, numa evidente preocupação com o espaço geográfico. E Lefebvre era na época em que este livro foi escrito, início dos anos 1970, sem a menor dúvida o marxista que mais ênfase dava ao espaço, à “produção do espaço” como ele dizia, na sua análise do capitalismo]. Deveria mostrar que existem ou podem ser deduzidos a partir dos marxismos vários caminhos para a geografia, e não um só. E deveriam ser abordados outros assuntos ou tópicos, negligenciados no livro, que seriam interessantíssimos nessa relação entre marxismo e geografia: os desequilíbrios regionais e os regionalismos, a divisão territorial do trabalho as desigualdades inter-regionais e internacionais, o que é o Estado territorial moderno e suas relações com a sociedade e com o espaço geográfico, etc. Todavia, não se pode ficar lamentando o que não foi feito, por mais pertinente e importante que seja, e sim falar do que foi.

Algumas citações do livro são interessantes para servirem de reflexão. Por exemplo, esta:

A resposta de Marx às concepções “ecológicas” que retomam a idéia de colocar limites ao desenvolvimento – para retomar o já famosíssimo título da proposta do Clube de Roma (...) era já muito clara antes que elas surgissem: para a superação das contradições do capitalismo é “necessário que o pleno desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado uma condição da produção, e não que determinadas condições de produção sejam colocadas como limites do desenvolvimento das forças produtivas”. Está claro, de fato (...) que os limites do desenvolvimento não podem coincidir com as condições capitalistas de produção. (Quaini, p.136, grifos nossos).

Como se percebe, uma veneração ao progresso, ao desenvolvimento das forças produtivas, aceitável num autor do século XIX mas totalmente anacrônico para alguém que escreve no final do século XX e que deveria ter assimilado as inúmeras obras e pesquisas que evidenciam os limites da biosfera, e não apenas do capitalismo, os problemas de certa tecnologia, e não apenas das relações sociais capitalistas. Ou ainda esta outra citação de Marx – um trecho por sinal que Marx reproduziu em pelo menos duas obras (nos Grundrisse  e n’O Capital), sempre concordando com o seu teor: Lembremos de passagem que Marx, no Capital, recusa também no plano historiográfico esta concepção romântica de natureza  [que Quaini afirma existir em Lévi-Strauss e em outros que, segundo ele, mitificam as “comunidades primitivas” com a sua pretensa harmonia com o meio natural] e pronuncia-se a favor de uma relação dialética: “uma natureza por demais pródiga segura o homem pela mão como se segura uma criança em andador, e não faz do desenvolvimento do próprio homem uma necessidade natural” (Quaini, p. 138). É lógico que, após fazer essa citação, Quaini rapidamente tergiversa, mudando de assunto e passando a afrontar os “reacionários” que criticam a técnica que destrói o meio ambiente, não comentando – algo que daria um prato cheio para qualquer geógrafo mais perspicaz! – essa idéia esdrúxula (que ele chama de “dialética”) na qual Marx sem nenhuma dúvida acreditava, isto é, que uma natureza pródiga (Marx refere-se explicitamente aos trópicos com a sua exuberante vegetação e sua rica fauna) atrapalha o desenvolvimento econômico e social, e que os desafios que a humanidade encontrou na zona temperada foram fundamentais para o maior desenvolvimento da Europa.

Uma idéia central nesta obra, a nosso ver o âmago mesmo da argumentação do Autor, é que o advento do capitalismo, em especial com a Revolução Industrial,  rompeu o vínculo entre sociedade e natureza. A crescente urbanização (com todo um acúmulo de problemas nas grandes cidades) e o despovoamento do meio rural, além da tecnologia moderna, teriam provocado uma rapinagem da natureza (semelhante à exploração dos trabalhadores, sugere Quaini), criando uma segunda natureza que seria antes de tudo problemática, grávida dos atuais problemas ambientais na escala planetária. E qual seria, de acordo com o Autor, a solução para esse dilema? Ora, não é nada difícil de se deduzir: logicamente que o final do capitalismo e a implantação do socialismo, da economia planificada. Nas suas palavras:

Antes de mais nada fica claro que as contradições ecológicas e territoriais devem ser reconduzidas aos mais profundos antagonismos sociais do modo de produção capitalista e que para elas não pode haver superação real a não ser como superação das relações de produção e portanto de toda a organização social e territorial do capitalismo que com a objetividade implacável de uma monstruosa segunda natureza contradiz tanto a natureza como o homem. É a conclusão a que chega Engels [que afirma que] “A questão da habitação poderá ser resolvida somente após mudanças sociais de tal alcance que permitam enfrentar a eliminação da antítese entre cidade e campo, que foi levada ao auge pela atual sociedade capitalista (...) A solução da questão da habitação não traz consigo a solução da questão social, mas, ao contrário, somente a solução da questão social, isto é, a abolição do modo de produção capitalista, tornará ao mesmo tempo possível a solução do problema da moradia” (Quaini, p.134-5).

Como se vê, a velha e desgastada “solução” do tudo ou nada: ou abolimos o capitalismo (e aí, por um passe de mágica, o “socialismo” vai engendrar uma sociedade perfeita, sem desigualdades nem problemas a sério) ou nunca haverá um equacionamento para a escassez de habitação popular, para a poluição, para a situação das mulheres ou dos afro-descendentes, para os dilemas dos indígenas, para os desequilíbrios regionais, para o aquecimento global ou para qualquer outro contratempo mais grave que surja no futuro.  O problema é que essa visão intransigente e no limite totalitária (o “tudo ou nada”, a crítica radical a qualquer forma de “reformismo”, de conquistas democráticas ou avanços dentro do sistema, a ilusão de uma mudança total implantada por um partido, que evidentemente se diz representante da vontade coletiva, que assuma o poder) há tempos, muito antes da publicação do livro de Quaini, já fora desmentida pelos acontecimentos, pela história do século XX. E não deixa de ser intrigante, e preocupante, o absoluto silêncio de Quaini a respeito da enorme degradação do meio ambiente na antiga União Soviética (que ainda existia na época) e nos demais países do socialismo real. Muitos marxistas já haviam denunciado os enormes problemas ambientais no socialismo real – além de outros: opressão das mulheres, de minorias étnicas e de homossexuais, intransigência frente a qualquer forma de oposição ou de imprensa livre, enorme número de prisioneiros políticos, etc. –, mas Quaini, aparentemente tão fiel ao malfadado e já extinto PCI (que conseguiu desmoralizar a outrora poderosa esquerda na Itália, abrindo o caminho para o neofascismo à la Berlusconi), usa a tática da avestruz, ou seja, ignora completamente essa questão que desafia a sua tese.


ADENDO – o presente explica o passado?

Quaini afirmou ter como ponto de partida o “método marxista” ou “regressivo”, segundo o qual o presente explica o passado e não o oposto. Entrementes podemos duvidar que ele tenha de fato feito uso desse procedimento e, a rigor, esse pretenso método, ao invés de ser uma descoberta genial como pretendem alguns, dentre os quais Quaini, é apenas uma idéia polêmica baseada numa leitura empobrecida da teoria da evolução. Longe de ser um procedimento científico pertinente, seja nas ciências naturais seja em especial na história e nas ciências sociais, esse pretenso método é de fato uma especulação ou, no limite, até mesmo uma fanfarronice intelectual típica de alguns autores do século XIX (mas não de Darwin) com a sua pretensão de alçar o evolucionismo a uma receita que explicaria tudo: o social, o econômico, o cultural, a história humana enfim.  Sem dúvida que a teoria da evolução representou um enorme avanço nas ciências da natureza, uma verdadeira revolução científica de inegável importância e que até hoje, junto com a genética, constiu o alicerce mais vigoroso no qual se apoiam as ciências da vida. Mas a partir daí falar em “evolução” como algo necessariamente positivo e detectável na história das sociedades humanas – ou nas mudanças temporais de toda a humanidade – vai uma distância enorme. Evolução, a partir do século XIX, tanto no positivismo como no marxismo, se transformou numa noção que praticamente subsumiu a ideologia do progresso. Uma leitura empobrecida do darwinismo porque neste não há uma teleologia, ou seja, não existe uma finalidade predeterminada na evolução: ao contrário do que pensavam alguns no século XIX, inclusive Marx, ela não se constitui desde o início para gerar inexoravelmente o ser humano no futuro.

Marx, principalmente na obra Contribuição à crítica da economia política [e também em trechos dos Grundrisse] havia comentado que a chave para se compreender a anatomia do macaco [que supostamente, pelo entendimento do darwinismo vulgar do século XIX, seria nosso ancestral direto] estaria na do homem e não vice-versa. [Existe aí, de forma subentendida, uma compreensão equivocada do evolucionismo, como se o macaco fosse nosso ancestral direto, o que não é o caso. Existem ancestrais em comum no processo evolutivo, e os primitivos hominídeos se assemelhavam bastante aos atuais primatas.]. O que Marx pretendia com essa metáfora era assinalar que o passado era uma espécie de ancestral do presente, ou seja, que as formações sociais mais recentes, como a sociedade moderna e capitalista do século XIX, por serem mais “evoluídas”, seriam a chave para se entender as anteriores e nunca o contrário. Uma idéia ou especulação polêmica, que nenhum biólogo competente vai levar a sério quando estuda a anatomia dos primatas ou dos demais seres vivos. Pois se aprende mais dissecando, observando suas partes e suas interações, seu funcionamento enfim, e não primordialmente comparando com a anatomia humana numa perspectiva falaciosa que esses seres vivos “primitivos” seriam espécies de “embriões” – ou o “passado biológico” – do ser humano. Além disso, há neste assunto – isto é, numa possível comparação da anatomia de duas espécies biológicas distintas – uma via de mão dupla, pois também se pode aprender algo sobre a anatomia ou a fisiologia do ser humano estudando a dos macados ou eventualmente a de outros seres vivos, e não apenas o inverso.

Mas o pior mesmo é trazer esta metáfora para o estudo das sociedades humanas, como se nestas existisse uma evolução semelhante à do mundo biológico, algo que resulta numa compreensão inadequada e anacrônica do social-histórico. Com esse procedimento inevitavelmente se incide em explicações teleológicas ou finalísticas, que por sinal existem efetivamente na obra de Marx. Seria como se, a partir do capitalismo, pudéssemos entender de fato a “essência” do passado, por exemplo da Idade Média ou da antiguidade, como se estas épocas fossem apenas espécies de “embriões” ou avatares que inexoravelmente estariam preparando ou incubando o capitalismo, a sociedade moderna. Nenhum historiador sério, nem mesmo sendo ou tendo sido marxista – tais como, por exemplo, Jean-Pierre Vernant ou Moses Finley, estudiosos da Grécia e de Roma da antiguidade, ou Jacques Le Goff, especialista na Idade Média – vai adotar esse viés que no fundo tão somente descaracteriza a realidade desses tempos, transformando-os em simples “preparatórios” para o que veio depois. Afinal de contas, não é verdade que o futuro esteja predestinado no presente (ou no passado) como o frango num ovo de galinha. Uma época sempre contém inúmeras possibilidades ou opções, e nunca uma só. A consecução desta ou daquela alternativa depende de múltiplos fatores (inclusive da indeterminação, isto é, do acaso ou das contingências) – principalmente das ações dos personagens ou dos atores fundamentais, além evidentemente dos chamados “fatores objetivos” (economia, cultura, relações sociais) –, não sendo nunca algo já predeterminado por uma lógica inquebrantável qualquer. Com esse “método regressivo” proposto por Colletti e Quaini – que de fato eles encontraram em Marx, não obstante ser também possível extrair desse clássico lendo outras obras, por exemplo O 18 Brumário de Luis Bonaparte, propostas metodológicas diferentes – poderíamos afirmar, para mencionar apenas um exemplo, que o idioma português é a chave para entendermos o latim e não o contrário. Um despautério, pois sem dúvida que o oposto é mais apropriado: é mais fácil explicar o português a partir do latim do que o inverso.

É evidente que sempre cabem comparações ou analogias entre épocas ou realidades distintas, que muitas vezes ajudam a compreender seja o passado seja o presente. O historiador Paul Veyne (Acreditavam os gregos em seus mitos? Editora Brasiliense, 1984), por exemplo, ao tentar responder à questão contida no título de seu livro, fez comparações com o presente: acreditavam sim (e ao mesmo tempo duvidavam) da mesma forma que nós acreditamos (mais ou menos, em geral sem muito fanatismo, pelo menos no que toca à população letrada e com maior escolaridade) nos nossos: na salvação da alma, no céu e no inferno, em Jesus Cristo ou nos santos milagreiros como São Judas Tadeu ou Santo Antonio, e por aí afora. [Não pretendemos com essa menção resumir o excelente livro de Veyne, que contém muitos outros raciocínios relevantes para o tema; apenas mostramos que analogias às vezes ajudam a compreender, embora sempre parcialmente, um fenômeno]. Mas isso não é usar o “método regressivo” e tampouco assegurar, como fez Quaini, que “o único real é o presente”. É apenas o uso de analogias, de um método comparativo (que não implica, necessariamente, em privilegiar o presente; por sinal, nesse estudo de Veyne o importante mesmo era o passado e este não foi enxergado como “embrião” do presente), que sempre foram e continuam sendo feitas na história e nas ciências sociais em geral. Só que essas comparações ou analogias nunca esgotam um tema, são apenas um recurso em geral provisório para entender melhor algo que, no fundo, deve sempre ser compreendido de fato nas suas especificidades, na sua natureza particular e original.

Neste livro resenhado, Quaini realmente aplicou esse método anunciado? Acreditamos que não. Mesmo talvez sem o perceber, ele fez o contrário, procurou explicar o presente – a atual crise ecológica, além da crise da geografia – pelo passado, pelas observações de Marx e Engels a respeito das contradições do capitalismo de seu tempo, do século XIX. Ainda bem que procedeu dessa forma, pois seguir à risca essa especulação evolucionista que denominou “método regressivo” seria praticamente o mesmo que pretender explicar o latim a partir do português! Essa profissão de fé no “método regressivo”, que aparece no início do livro, na realidade não indica o procedimento adotado daí em diante por Quaini, que em última instância foi, como já assinalamos, o de apenas pinçar em obras de Marx e de Engels trechos que supostamente explicariam a atual crise ambiental. Quanto à proclamação que em tese fundamenta esse método, segundo a qual “faço história do passado partindo do presente como sendo o único real”, por nós já mencionada, trata-se de outra bazófia. Como se o presente (que por definição sempre é um instante provisório e fugidio, que num piscar de olhos se transforma em passado) fosse mais real – Quaini chega a dizer o único real! – que o passado para o investigador. Uma fantasia, uma quimera que se fundamenta num ideal de cientificidade segundo o qual a teoria sempre parte da observação in loco, como se o presente histórico fosse algo observável com a mesma objetividade que encontramos nas ciências da natureza. Não por acaso François Châtelet denominou o século XIX de “século do positivismo”, cujos ecos ressoam até hoje nos escritos de marxistas como Massimo Quaini.
(São Paulo, novembro de 2004)

NOTAS:
(*) Professor Livre Docente no Depto. de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo.

(1) HARVEY, D. Explanation in Geography, London, Edward Arnold, 1969; CLAVAL, P.  La pensée géographique, Paris, 1972; e LACOSTE, Y. La géographie, in CHÂTELET, F. (Org.), La philosophie des sciences sociales, Paris, 1973, artigo que posteriormente seria ampliado no célebre livro La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre, Paris, 1976.

(2) Nesse supra referido ensaio de 1973, Lacoste adota a interpretação de Foucault segundo a qual a partir da Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX – seja com Hegel, com Marx , com os anarquismos ou mesmo com o positivismo –, a categoria tempo passou a ser supervalorizada (a “revolução”, as transformações históricas que produzem mudanças radicais na sociedade e no seu meio ambiente), sendo que concomitantemente o espaço tornou-se algo desvalorizado, visto até mesmo como “conservador” ou “partidário do status quo”.

(3) Engraçado é que esse ex-teórico do Partido Comunista Italiano (PCI) virou neoliberal a partir do final dos anos 1980, tendo inclusive se tornado num defensor do governo direitista de Silvio Berlusconi. Sobre a reviravolta no posicionamento intelectual de Colletti, cf. as menções irônicas de BOVERO, Michelangelo. Contra o governo dos piores. Uma gramática da democracia. Editora Campus, 2002, pp. 160-2.

(4) Para evitar uma longa digressão, no final desta resenha há um Adendo no qual explicitamos melhor este pretenso “método marxista” ou “regressivo”. 

(5) SCHMIDT, A. El concepto de naturaleza en Marx, México, Siglo Veintiuno, 1976. Integrante da Escola de Frankfurt, Schmidt defendeu este trabalho, nos anos 1960, como tese de doutorado em filosofia.

(6) VESENTINI, J. W. Geografia, Natureza e Sociedade, São Paulo, Contexto, 1989, pp. 41-50.  

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