Jesus o Bom Pastor

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09 setembro 2010

Resenha crítica do livro Introdução à geografia, de Nelson Werneck Sodré, Editora Vozes, 1976 (*)


  


José William Vesentini (**)

Causou certa perplexidade nos meios geográficos a publicação, em 1976, do livro Introdução à Geografia, de Nelson Werneck Sodré. O autor não era visto como um estudioso da geografia, embora fosse conhecido e até admirado – tendo-se em vista que vivíamos em plena ditadura militar – por uma expressiva parcela da comunidade geográfica brasileira como um historiador, ex-militar e principalmente marxista. Apesar de ignorado pela academia, o livro foi bem aceito pela parcela mais crítica dos estudantes de geografia (de graduação e de pós-graduação) e dos professores do ensino fundamental e médio, que viram nele mais um aliado na denúncia do tradicionalismo e principalmente do comprometimento da ciência geográfica dominante na época com a mentalidade tecnocrática e com a denegação dos problemas sociais e ambientais, tidos como “não geográficos”.

É exatamente a conjuntura dessa década, tanto no exterior (a guerra fria) como principalmente no Brasil, que ajuda a explicar esse repentino interesse de Werneck Sodré pela geografia. O autor via na ciência antes de tudo uma forma de militância, e escrever sobre a geografia naquele momento, a nosso ver, significou para ele duas frentes de luta: por um lado, a possibilidade de denunciar um certo viés tecnicista e até mesmo oportunista, no fundo um arremedo do que ocorria nos Estados Unidos, que predominava em boa parte da geografia brasileira; por outro, sem dúvida que mais importante para o autor, esse foi uma maneira que encontrou para criticar, mesmo que de forma disfarçada ou indireta, o pensamento tecnocrático do governo federal e em especial a geopolítica dos militares.

Cabe lembrar que de 1974 a 1979, o general Ernesto Geisel era o Presidente da República, assessorado de forma íntima pelo estrategista Golbery de Couto e Silva, famoso por suas publicações de geopolítica. Com essa obra, usando a geografia como pretexto, Werneck Sodré engendrou uma crítica dissimulada à geopolítica de Golbery, que tanta influência exerceu no governo Castelo Branco e depois no governo Geisel (e mais tarde também no governo Figueiredo). Uma crítica indireta, através da geografia, porque a publicação de um livro que desancasse aquele pensamento geopolítico brasileiro nos anos 1970, além do mais escrito por um marxista (e ex-militar!), provavelmente seria censurada e implicaria até mesmo no risco de prisão e tortura.

Ademais, nas décadas anteriores, o autor havia mantido um certo contato com a geografia de humanistas como Léo Waibel, Pierre Monbeig e outros, que a encaravam como uma disciplina indissociavelmente ligada à história, uma ciência social que estuda a natureza e o espaço onde a humanidade vive e no qual produz modificações. E toda aquela rica herança era ignorada ou até desprezada naqueles fatídicos anos 1970, em especial nas duas principais instituições cariocas de produção geográfica: a UFRJ e o IBGE. Na cidade onde Werneck Sodré morava e na qual atuava, o Rio de Janeiro, a geografia havia se tornado numa técnica de construção de “modelos” formais (alicerçados na matemática das matrizes) e visivelmente a-históricos, que nada traziam de novo em relação ao conhecimento da realidade espacial, do espaço geográfico.  Havia uma expansão, nas universidades brasileiras (com raras exceções), de uma geografia denominada quantitativa e capitaneada principalmente pela Universidade de Chicago, na qual vários geógrafos do IBGE e da UFRJ foram assistir a cursos de especialização ou de pós-graduação. Em grande parte das universidades brasileiras, os departamentos de geografia saíram das faculdades de filosofia, onde nasceram, e procuraram se integrar nas chamadas “geociências”, numa patética tentativa de assumir um viés pragmático – e tecnocrático –  “mais respeitável”, mais voltado para um (pretenso) “mercado de trabalho não tradicional”. A palavra de ordem nos cursos superiores de Geografia era a de preparar “técnicos” para o planejamento (regional, urbano, setorial), desvalorizando completamente a formação de professores, de intelectuais críticos e do próprio ensino em geral, que afinal de contas foram os grandes impulsionadores da expansão dos cursos de geografia nas universidades européias – e por extensão no resto do mundo – no século XIX e na primeira metade do XX. Quando a profissão de geógrafo foi reconhecida no Brasil, exatamente nesses anos 1970, ela foi sintomaticamente abrigada na instituição CREA, junto com os engenheiros, arquitetos e agrônomos!  Desnecessário enfatizar que tudo isso implicava numa enorme perda de criticidade, numa omissão dos problemas sociais e ambientais, num abandono de toda uma tradição epistemológica (em especial kantiana) que sempre havia enfatizado a contextualização (principalmente histórica) e até mesmo a discussão sobre o contingente e o livre arbítrio humano.

Logo no prefácio desse livro, Werneck Sodré evidencia a sua aversão pela geografia brasileira hegemônica nos anos 70:

“A Geografia no Brasil, na realidade, apresenta uns poucos valores individuais, na maior parte remanescentes ainda daquele período melhor [isto é, o período dos “grandes mestres” como Waibel e Monbeig, que o autor havia elogiado anteriormente]”. Ele complementa essa crítica com o seguinte: “O praticismo empresarial pode oferecer resultados parciais apreciáveis, mas oculta a essência dos fenômenos e processos, além de importar, quase sempre, na exploração predatória dos recursos naturais(...) Uma Geografia econômica meramente descritiva e rica em dados estatísticos pode, na realidade, esconder mais do que revela. Pode, sem a menor dúvida, nada ensinar.” (SODRÉ, 1976, pp. 9-11).

Werneck Sodré deixa de lado a Geografia Física, vista por ele como plena de “inovações técnicas, mas anárquica” (p.9), principalmente porque ela não teria incorporado a dialética e dessa forma, a seu ver, “não seria científica” (sic!).  Ele se concentra na Geografia Humana, em especial no que chama de “falsidades ideológicas” (pp.119-29), fazendo breve um percurso pela história da geografia, pelo “determinismo geográfico” e principalmente pela geopolítica.

No capítulo sobre “a formação de Geografia” (pp.13-36), Sodré advoga a questionável tese febvriana (originária de Lucien Febvre na obra La Terre et l’evolution humaine, de 1922) segundo a qual esta disciplina teria surgido como – e sempre teria sido – uma espécie de “auxiliar da história”. Mas agora [isto é, nos anos 1960 e 70], argumenta Sodré, ela estaria fazendo o oposto, estaria ajudando a “retardar ou impedir o desenvolvimento da história” (p.30). E no capítulo sobre o “determinismo geográfico” (pp.37-53), o autor cita uma série de afirmativas, todas descontextualizadas, de autores que teriam sido deterministas: Bodin, Montesquieu, Tocqueville, Michelet, Buckle, Silvio Romero e, logicamente, Ratzel. Aqui, ele se fundamentou principalmente em Plékhanov (“As questões fundamentais do Marxismo”) e em Lucien Febvre, um amigo e ex-aluno de Vidal de La Blache e que, na realidade, nessa sua obra de 1922 foi o criador desse mito sobre a existência de uma “escola geográfica determinista alemã ou ratzeliana” em contraponto à “escola possibilista francesa ou lablacheana” (1).

No capítulo sobre “A Geopolítica” (pp.54-71), o mais importante do livro, Werneck Sodré é impiedoso:

“Se o determinismo é um dos traços mais característicos da Geografia da época do Imperialismo, a Geopolítica assinala a deformação levada à monstruosidade - é a Geografia do Fascismo. Desde que Ratzel lançara as bases do determinismo, abre-se à Geografia dois caminhos: o científico e o ideológico. A Geopolítica representa a culminância da trilha ideológica.” (p.54)).

Reproduzindo trechos de alguns autores geopolíticos clássicos – Rudolf Kjellén, Otto Maul, Arthur Dix, Halford MacKinder e Karl Haushofer, todos eles, principalmente MacKinder, amplamente utilizados pela geopolítica brasileira e por Golbery do Couto e Silva (que, no entanto, apesar de ser o principal alvo visado, nunca é citado neste livro) –, Sodré procura mostrar que suas idéias nada mais seriam que um subproduto do “determinismo geográfico” de Ratzel, a partir daí chegando à seguinte conclusão:

“É como a definiu Pierre George: ‘A pior das caricaturas da Geografia aplicada na primeira metade do século XX foi a Geopolítica, justificando autoritariamente qualquer reivindicação territorial, qualquer pilhagem, por pseudo-argumentos científicos’.” (p.70).

Nesse seguinte trecho da obra, podemos perceber qual é de fato o alvo que o autor quer atingir com essa apreciação da Geopolítica:

“A Geopolítica, que passara por um transitório eclipse com a derrota nazi-fascista, ganhou corpo novamente com a chamada ‘Guerra Fria’, definindo claramente seu conteúdo ideológico. Pela sua natureza e pelos seus propósitos, deveria acolher-se particularmente nos Estados Unidos e, em proporções mais reduzidas, nos países dependentes dos Estados Unidos. Trata-se, nesta nova fantasia carnavalesca, de estabelecer a naturalidade e até a necessidade da hegemonia mundial de uma grande potência, capaz de dar segurança aos povos seus tutelados e servidores, e de assegurar neles a vigência ou a continuidade de regimes políticos autoritários, apresentados como preservadores da ‘civilização ocidental e cristã’(...) Trata-se, como se vê, de pessoas com as melhores intenções, tal como os atuais futurólogos, profetas de catástrofes e juízes de países que condenam à servidão perpétua, gordos, pretensiosos e ignorantes.” (p.66-7).

Nessa longa citação podemos perceber a intenção de desancar dois autores importantes na época: o general Golbery do Couto e Silva e o futurólogo Herman Khan, embora nenhum deles seja explicitamente citado. Golbery, cujo livro Geopolítica do Brasil (Editora José Olympio, 1967) era uma referência sobre o assunto no Brasil (e uma das obras máximas dos intelectuais orgânicos do regime militar), entre outras coisas advogava que o Brasil deveria se alinhar à “civilização Ocidental e Cristã”, liderado pelos Estados Unidos, contra o “mundo comunista” capitaneado pela ex-União Soviética. E Herman Kahn, que se vangloriava publicamente pelo seu elevado QI (145, como ele dizia) e pela sua obesidade (165 kg), estava muito em voga na época por ter publicado um estudo sobre O mundo em 2000 (em co-autoria com A. J. Wiener, Edições Melhoramentos, 1967), onde entre outras previsões, especulava que os países desenvolvidos como os Estados Unidos iriam crescer até o final do século em média mais do que os países “em desenvolvimento”, como o Brasil, a Índia ou a China (2), além do instituto Hudson, para o qual Kahn trabalhava (ou melhor, dirigia), ter elaborado mirabolantes planos para a Amazônia, que evidentemente ficaram somente no papel embora tenham irritado profundamente a intelectualidade brasileira da época, tanto a de esquerda como a de direita.

No último capítulo do livro, “as falsidades ideológicas” (pp.119-29), Werneck Sodré polemiza com determinadas ideologias que seriam constantemente reproduzidas pela geografia: o racismo, o determinismo novamente (desta vez en passant) e principalmente a “explosão demográfica”.  Ao repudiar o racismo, Sodré cita frases ou idéias de dois intelectuais brasileiros – estranhamente, nenhum deles geógrafo – que teriam propagado ideologias racistas: Euclides da Cunha e Paulo Prado. O principal argumento que ele usa para envolver a Geografia nessa trama é o seguinte:  “Ora, se a Geografia não impugnou tal falsidade - ou por acolhê-la ou por colocar-se em omissão - está contribuindo para endossá-la. E isso em detrimento, evidentemente, dos interesses populares” (p.121).

Com isso constatamos mais uma vez que na verdade Sodré escreveu um livro de polêmica, de confronto ideológico, procurando se contrapor a algumas idéias bem vistas pelo regime militar, usando a geografia no título de sua obra mais como uma forma de evitar uma possível censura, como uma espécie de dissimulação na capa do livro de sua real intenção, que na época era vista como subversiva. Ipso facto, este não é um livro sobre a geografia, ou mesmo de debates dentro da geografia, como o título poderia sugerir. É, antes de tudo, um livro de polêmica ideológica a respeito de alguns temas constantemente abordados pela imprensa nos anos 1970.

Vejamos um outro trecho do livro. Ao abordar a “explosão demográfica”, tema em moda naqueles anos 1960 e 70, Sodré afirma que:

“A mais recente das falsidades ideológicas que utilizam a geografia como veículo está relacionada ao problema da população(...) No arsenal ideológico, para explicar e justificar o atraso em que eram mantidas vastas extensões do globo - suas populações - pela expansão colonial e pelo Imperialismo, foram mobilizadas sucessiva ou simultaneamente várias teses: tais populações eram racialmente inferiores(...); eram condenadas pelo clima das regiões que habitavam; eram vítimas de ‘doenças tropicais’. A última no tempo, que tratamos agora, está formulada mais ou menos assim: tais populações são atrasadas e miseráveis porque são numerosas; daí a solução fácil: controlar a natalidade, visando reduzir o número de indivíduos(...) A miséria não resultaria da exploração – a  imperialista como a de classe –, mas da ‘explosão demográfica’.” (pp.122-3).

Em suma, esse é um livro datado e voltado para a polêmica das idéias, para uma crítica enviesada da ditadura militar e de sua dependência frente ao “imperialismo norte-americano”, no qual a geografia serviu mais como uma espécie de “porta de entrada acadêmica” para Werneck Sodré abordar temas candentes na época, políticos e, por isso, tidos então como insidiosos: a geopolítica dos militares brasileiros, em primeiro lugar, e também algumas idéias constantemente veiculadas (ou então omitidas) pela mídia no início dos anos 1970, tais como aquelas do futurólogo Kahn, as visões da natureza (clima) ou da “explosão demográfica” como causas do subdesenvolvimento, o exame do papel hegemônico dos Estados Unidos na América Latina e em outras partes do mundo (basta lembrar da guerra do Vietnã, uma ferida ainda não cicatrizada em 1976, relembrada com freqüência pelos diversos intérpretes e pela mídia).

Não é o caso de ler essa obra – com base unicamente no seu título – com o ingênuo propósito de “aprender algo sobre o que é a geografia”, nem mesmo aquela hegemônica no Brasil nos anos 1960 e 70. Afinal, não foi esse de fato o objetivo do autor, que, de forma proposital, procurou escrever um trabalho militante, uma espécie de panfleto (no bom sentido da palavra) direcionado à esquerda brasileira do período – e provavelmente também aos professores de história e geografia, com vistas a acrescentar novas polêmicas nas suas aulas –, e com isso intervir em algumas questões candentes que Werneck Sodré acreditava estarem sendo abordadas inadequadamente ou então excluídas do incipiente debate político nacional dos anos 1970.



NOTAS:
(*) Resenha elaborada em 2005 e publicada in SILVA, Marcos (Org.), Dicionário Crítico Nelson Werneck Sodré, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008, p. 214-218. Contudo, na edição desse dicionário coletivo, à revelia do organizador, foram cortados alguns trechos desta resenha que agora aparece na íntegra.

(**) Professor Livre Docente no Depto. de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. 

(1) Para um aprofundamento nessa temática de como os franceses no início do século XX criaram o mito de uma “escola determinista” capitaneada por Ratzel veja-se o nosso ensaio Controvérsias Geográficas. Epistemologia e Política, disponível na revista Confins on-line: http://confins.revues.org/document1162.html

(2) Previsão essa totalmente equivocada, como podemos constatar hoje, nesta primeira década do século XXI. É interessante notar que o nacionalismo do ex-general impediu que ele adotasse a atitude de outros marxistas da época, principalmente alguns propagadores da teoria da dependência, que usaram essas previsões de Khan e outras semelhantes, concordando implicitamente com elas, para divulgar a idéia de que somente rompendo com o capitalismo – isto é, implantando o socialismo e a economia planificada – é que os países subdesenvolvidos, como o Brasil, conheceriam um real crescimento econômico. (Outro disparate desmentido pelo tempo histórico, pela crise terminal da planificação da economia no final dos anos 1980 e pelo acelerado crescimento com base na economia de mercado dos “tigres asiáticos” – e posteriormente da China e da Índia –, além de outras economias que no final dos anos 1960 eram tidas como subdesenvolvidas e estagnadas).


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