Jesus o Bom Pastor

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24 agosto 2010

O novo papel da escola e do ensino da geografia no século XXI José William Vesentini


     I. Introdução

     Nova ordem mundial, globalização, Terceira Revolução Industrial ou revolução técnico-científica, multipolaridade, sociedade pós-capitalista, competição econômica e tecnológica no lugar da rivalidade político-militar...  Todas essas temáticas ou idéias podem ser encontradas atualmente com grande freqüência nos meios acadêmicos e até na mídia. A respeito delas existem diversas leituras, controvérsias, usos alternativos. Mas elas fundamentalmente se entrecruzam e dizem respeito aos anos 90 e às perspectivas para o século XXI.  Século XXI que iniciou-se desde 1991, com a implosão da ex-União Soviética e o final da Guerra Fria; com o apoio de dois importantes autores, podemos lembrar que para o historiador Eric Hobsbawn  "O século XX curto iniciou-se em 1914-17 e terminou em 1989-91", e na interpretação do economista norte-americano Lesler Thurow o século XXI começou em 1994, quando “Os Estados Unidos pela primeira vez em mais de cem anos deixaram de ser a maior potência econômica do globo”, fato que ocorreu a partir do momento em que os países membros da antiga CEE ratificaram o Tratado de Maastricht e criaram a União Européia.
     Mas não vamos nos alongar aqui a respeito da nova (des)ordem mundial ou das mudanças no mapa-mundi, inclusive porquê já o fizemos numa obra bem mais extensa1. O que pretendemos enfatizar são as mudanças econômico-sociais decorrentes da chamada Terceira Revolução Industrial e seus impactos na força de trabalho e consequentemente na escola e no ensino da geografia. É evidente, no entanto, que essa temática insere-se na nova ordem mundial e em especial nas perspectivas para o século XXI, que mesmo tendo já começado encontra-se ainda num estágio embrionário ou de desenvolvimento inicial.
     Também não iremos, principalmente pela falta de tempo e espaço, tematizar o porquê das mudanças econômico-tecnológicas e sociais, e estamos partindo do pressuposto que todos os aspectos do social estão interligados, com redes de influências recíprocas, embora não seja possível fixar aprioristicamente que um desses fatores ("as forças produtivas", por exemplo, ou as "relações de produção", tal como nos dizeres da cartilha marxista-leninista) seja sempre o determinante ou a mola propulsora frente aos demais. Enfatizaremos aqui as mudanças no mercado de trabalho e as suas influências no ensino, embora isso não implique num juízo de valor segundo o qual o sistema escolar deve caminhar – e nem mesmo que ele sempre caminha – atrelado a esse condicionante. Mas acreditamos que por mais que se valorize a importância da escola formal para o desenvolvimento da cidadania e das potencialidades do educando – algo sobre o qual nunca é demais insistir –, na prática sempre há uma indissociável ligação com a questão do trabalho (que ainda é fundamental na sociedade moderna, apesar de talvez não ser mais o alicerce fundante desta). Por um lado o sistema escolar é sem dúvida um instrumento de libertação (individual e coletiva) e de expansão da democracia, mas, por outro lado, desde as suas origens ele teve como uma de suas determinações (não confundir com determinismo) a necessidade de (re)socializar as pessoas, em especial as novas gerações (hoje não mais apenas nem principalmente estas, como veremos a seguir), com vistas às mudanças sócio-econômicas, ou, em outras palavras, às necessidades de reprodução ampliada do sistema. Cabe ainda ressaltar que o fato de valorizarmos as mudanças econômico-tecnológicas para explicar as transformações que vêm se operando no sistema escolar não significa que acreditemos que essas mudanças sejam autônomas ou que elas caminhem sempre em primeiro lugar, isto é, que sejam a locomotiva do social. Pelo contrário, pensamos que elas só adquirem em determinados momentos históricos um papel essencial porquê e quando determinadas condições políticas e até culturais as permitem ou inclusive as incentivam. Mas não iremos aqui e agora nos ocupar dessa complexa questão das relações de poder e dos valores societários que dão origem à inovação tecnológica.

     2. A Primeira Revolução Industrial e o sistema escolar

     O sistema escolar público e obrigatório para as massas populares é em grande parte fruto da Primeira Revolução Industrial, aquela que se iniciou na Inglaterra em meados do século XVIII e prosseguiu – tendo se espalhado para outros Estados europeus, o Japão, a Rússia e os Estados Unidos – até o final do século XIX.
     A Primeira Revolução Industrial foi marcada pela hegemonia britânica, pelo carvão como principal fonte de energia e pela grande concentração da atividade industrial em termos do espaço mundial. As principais indústrias foram as têxteis e as de bens de consumo não duráveis. Ela criou a divisão internacional do trabalho entre as nações exportadoras de bens manufaturados e as outras, a maioria, exportadoras de matérias primas com preços sensivelmente inferiores aos primeiros. A indústria moderna, nascida com a Primeira Revolução Industrial, contribuir para acolher as massas trabalhadoras que migravam do campo para as cidades; mas essas ressocialização das pessoas teve como suportes novos valores (de tempo e espaço, de felicidade, de futuro desejável etc.) e também novos hábitos, os quais necessitaram de uma nova instituição para serem reproduzidos às novas gerações - a escola pública, ou, pelo menos, a escola submetida a um controle estatal.
     A escola implantada no final do século XVIII e principalmente no século XIX, inicialmente nos países europeus e em alguns outros (Estados Unidos e Japão) que também acompanharam a industrialização clássica daquele momento, foi uma instituição voltada para enaltecer ou reforçar o patriotismo (pois a idéia de "mercado nacional" ganhava força e impulsionava as mudanças político-territoriais que criaram ou consolidaram os Estados-nações) e para implantar um novo sistema de valores adequados à sociedade mercantil, produtora de mercadorias. Tempo como valor de troca ("se gasta e não mais se vive"), espaço como lugares geometrizados e fixados por uma divisão do trabalho, um mínimo de matemática (afinal se mexia cada vez mais com dinheiro, com contas), um idioma "pátrio" ou oficial (os outros viravam "dialetos") a ser aprendido e uma história e uma geografia chauvinistas: esses foram os alicerces básicos da escola da Primeira Revolução Industrial2.
     Nesse contexto mencionado, o fundamental não era fornecer uma preparação técnica e nem mesmo distribuir diplomas; o mais importante era alfabetizar as massas (algo que incluía não só aprender a ler e escrever o básico no "idioma pátrio", mas também ter um mínimo de habilidade em matemática e informações em história e geografia). Muito diferente da escola predominante no Ocidente da Idade Média até o final do século XVIII, que era uma instituição para poucos (somente para a nobreza, ou parte dela), particular (da Igreja) e voltada primordialmente para ensinar o latim e a teologia.

     3. A Segunda Revolução Industrial e o ensino

     A segunda revolução industrial começou no final do século XIX, embora seja de fato típica do século XX. Ela foi marcada por um certo espalhamento ou expansão espacial (nos países ditos desenvolvidos e também em alguns da periferia) da atividade industrial e pela hegemonia dos Estados Unidos. A principal fonte de energia foi o petróleo e as indústrias de vanguarda nesse período foram as automobilísticas e outras normalmente ligadas a ela: petroquímicas, siderúrgicas, metalúrgicas, etc.
     Dois traços marcantes da Segunda Revolução Industrial foram o taylorismo e o fordismo. O taylorismo, de forma simplificada, consistiu numa técnica de gerenciamento que controlava bem mais os trabalhadores ou funcionários. "Dividir para reinar" foi o seu lema, e o controle rígido sobre o tempo necessário a uma dada tarefa visava ampliar a produtividade do trabalho. E o fordismo define-se fundamentalmente pelo lema "produção em massa e consumo em massa", ou seja, é identificado com a linha de montagem, com a produção em grande escala e estandartizada, com a concentração técnico-administrativa e o gigantismo ("maior é melhor") e com um enorme desperdício no uso de recursos naturais: primeiro se fabrica e depois se vende – e para isso existia a publicidade, cuja função era criar necessidades –, e no processo de fabricação o importante não é a qualidade e sim a quantidade, mesmo que haja uma enormidade de refugos, de mercadorias que serão inutilizadas na medida em que foram mal produzidas. Tanto o taylorismo quanto o fordismo aprofundaram a divisão do trabalho nas empresas (e também entre elas, notadamente o fordismo), exigindo assim funcionários mais especializados, isto é, que só faziam um tipo específico de serviço3.
     O sistema escolar da Segunda Revolução Industrial significou, além do prosseguimento da alfabetização das massas (o ensino público e obrigatório iniciado no final do século XVIII), uma extensão desse ensino até o nível médio (o nosso antigo 2o grau) e principalmente uma criação e expansão das escolas técnicas. Foi uma época de valorização dos diplomas, da especialização (não confundir com qualificação) da mão-de-obra e dos cursos técnicos, isto é, que ensinavam procedimentos ou "macetes" de uma dada profissão. A força de trabalho típica da Segunda Revolução Industrial foi o operário ou funcionário especializado, diferentemente do operário sem grande especialização do século XIX. Só que na Primeira Revolução Industrial a média diária de trabalho era de 12, 14 ou até 16 horas, ao passo que no século XX – graças ao aumento da produtividade do trabalho, em grande parte propiciada pelo taylorismo e pelo fordismo (além das lutas trabalhistas, evidentemente, que afinal das contas foram que concretizaram essa possibilidade aberta pela própria evolução técnica) –, essa média atingiu o ponto ideal de 8 horas.
     Na escola do século XX o fundamental era a aplicabilidade do saber, a razão pragmática. Os alunos e principalmente os seus pais preocupavam-se essencialmente com o futuro vestibular ou outro processo de selecionamento para as universidades. Ou melhor, eles se preocupavam de fato é com o futuro mercado de trabalho, pois ingressar numa boa faculdade era valorizado de forma direta pelo maior ou menor rendimento que esse tipo de diploma proporcionaria. Mesmo no ensino fundamental e médio “normal”, isto é, não técnico, a preocupação sempre foi com a "utilidade", em termos mercantis, do conhecimento, sendo secundário a sua importância para desenvolver potencialidades (raciocínio lógico, criatividade, criticidade etc.) do educando. A idéia predominante na escola fordista, na escola que predominou dos anos 1920 até a década de 70, era a de que se "aprendia" a trabalhar, ou se "aprendia" uma profissão na escola (daí os cursos "profissionalizantes" terem sido os preferidos nessa época), ou então a escola tinha algum defeito.

     4. A Terceira Revolução Industrial

     Vivemos atualmente a expansão da Terceira Revolução Industrial, muitas vezes conhecida como revolução técnico-científica. Ela já é marcante nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha e em vários outros países, embora ainda conviva com o final (e a permanência de inúmeros traços) da Segunda Revolução Industrial. Todavia, pode-se afirmar que, nos dias atuais, alguns países sequer ingressaram na Segunda Revolução Industrial  (a imensa maioria na África, na América central e no sul da Ásia) e outros, como o Brasil, não conseguem ingressar de fato na Terceira.
     Alguns elementos decisivos nesta nova revolução industrial são o final gradativo da hegemonia norte-americana e da era do petróleo, além do advento de novos setores industriais de ponta ou vanguarda – tais como a informática e as telecomunicações, a biotecnologia, a robótica, etc. –, que substituem as indústrias petroquímicas, siderúrgicas e automobilísticas como as que definem o ritmo de desenvolvimento de uma sociedade. O declínio da hegemonia dos Estados Unidos já é uma realidade, embora contestada por alguns: por um lado existe um avanço do Japão, da China e dos “tigres asiáticos” em inúmeros setores industriais e tecnológicos básicos, nos quais já competem em condições de igualdade com a economia norte-americana; e, por outro lado, existe a consolidação e a expansão da União Européia, que se constituu hoje na nova maior economia (e mercado) do globo. É lógico que os Estados Unidos continuam a ser a grande potência político-militar e uma das grandes potências econômicas deste início do século XXI, mas não mais a grande potência ou "superpotência" (conceito que vem caindo em desuso), pois aos poucos vai se esboçando uma nova multipolaridade no mundo, resultado do final da bipolaridade e que tem como um momento transitório uma aparente monopolaridade, que talvez tenha sido mais característica nos anos 1990. E a chamada “era do petróleo”, que também marcou profundamente o século XX e a Segunda Revolução Industrial, parece já está no seu ocaso: apesar da ainda enorme importância dessa fonte de energia, existe hoje um uso per capita, em quase todo o mundo (e principalmente nas economias desenvolvidas) bem menor que nas décadas precedentes, em especial que nos anos 60 e 70, nas quais o consumo do petróleo (em comparação com as demais fontes de energia) esteve no seu auge. No início da década de 1970 o petróleo contribuía com cerca de 67% da oferta mundial de energia, sendo que essa proporção caiu para 41%  no início dos anos  80, 25% no início dos anos 90 e cerca de 20%  na atualidade, havendo ainda uma tendência de maior queda relativa e provavelmente até absoluta. Outras fontes de energia, em especial as oriundas da biotecnologia  (que já em 2010 deverão representar quase 30% da oferta mundial de energia), começam a emular o petróleo como principal recurso energético da atualidade.
     Novas indústrias, no sentido amplo do termo (pois a indústria de transformação cede a cada dia seu papel motor para os serviços modernos: a produção de softwares para computadores torna-se mais importante que a fabricação de hardwares, a pesquisa biotecnológica representa já um valor maior que a produção agrícola, o engendramento de designs, de idéias, de procedimentos, etc., ganha um crescente espaço monetário às custas da desvalorização da fabricação de objetos) já constituem os setores de vanguarda nos dias atuais. A informática e a robótica, a biotecnologia (impulsionada em especial pela engenharia genética), a microeletrônica, a química fina, as telecomunicações e as indústrias de novos materiais: esses são setores que dependem muito mais da ciência e da tecnologia – e as utilizam muito mais – quando comparados com aqueles outros setores ou indústrias (têxteis, automobilísticos, etc.), que foram de vanguarda ou típicos da Primeira ou da Segunda Revolução Industrial. Nestes novos setores de ponta o fundamental são as idéias, as pesquisas, o trabalho cerebral e criativo, ficando a mão-de-obra barata e inclusive a especializada em segundo plano. E são setores que revolucionam mais uma vez toda a sociedade: eles não consistem somente na fabricação e venda de computadores, robôs, bugigangas eletrônicas (desde o cd-player ao marca-passos miniaturizado), organismos produzidos em laboratórios ou novos remédios oriundos da manipulações dos genes, mas, radicalmente, modificam os valores e os comportamentos básicos da sociedade moderna.
     A robotização, que se encontra num estágio relativamente embrionário mas que veio para ficar e deverá se expandir muito nos próximos anos e décadas, continuará a revolucionar o mercado de trabalho, eliminando em grande parte (em alguns lugares totalmente) a necessidade da força de trabalho barata e desqualificada, possibilitando ainda uma sensível redução na jornada de trabalho para a mão-de-obra que restar, que será altamente qualificada. (Mas atenção: falamos em possibilitar e não em determinar, pois a concretização dessa redução, fundamental para combater o desemprego, dependerá basicamente das lutas sociais). E as indústrias de novos materiais junto com a biotecnologia reduzem de vez o pêso ou importância do espaço físico (inclusive solo agriculturável) e das matérias primas em geral, tanto de origem agrícola como mineral (inclusive petróleo), possibilitanto que um pequeno país quase sem solos ou minérios possa tornar-se no maior produtor e exportador mundial de alimentos ou de insumos industriais, ou ainda que a cidade não precise mais do campo. Os computadores junto com as fibras óticas e as telecomunicações em geral estão transformando profundamente os escritórios, os bancos, as residências e os próprios meios de comunicações, que se tornam cada vez mais segmentados e interativos (no lugar de uma grande rede de TV ou um jornal nacional de imensa tiragem, a tendência agora são centenas ou milhares de canais por assinatura ou por segmentos sociais, milhares de jornais ou revistas locais ou voltados para um público específico, que inclusive contribui ativamente para a sua linha editorial, etc.).
     A Segunda Revolução Industrial concentrou capitais e procedimentos, criou gigantescas organizações, padronizou, massificou; e a revolução técnico-científica, por sua vez, começa a descentralizar, a desmassificar, a fragmentar, a dar mais autonomia aos funcionários e às empresas coligadas, antigas filiais. No lugar do fordismo e da linha de montagem, temos agora, de forma crescente, a produção flexível e o just-in-time. No lugar da centralização, a terceirização e a descentralização. No lugar da padronização e do consumo em massa estandartizado, temos o crescimento da personalização, da produção à la carte. No lugar do desperdício de recursos e matérias primas, temos agora uma preocupação com o controle de qualidade e com a fabricação somente do que for necessário4.

     5. O novo papel da escola no século XXI

     A escola, e consequentemente o ensino da geografia, passa por sensíveis tranformações em nossos dias, em especial nas economias mais avançadas. Expande-se aos poucos a idéia de que o importante é aprender a aprender e não receber um diploma e nem mesmo ter uma formação técnica. É o início do fim das escolas profissionalizantes, típicas da era do fordismo. É igualmente o declínio da especialização (no sentido da pessoa ou trabalhador se especializar ou somente saber um aspecto do real, um tipo específico de serviço) e uma maior valorização da qualificação (capacidade de pensar por conta própria, de se reciclar, de criar coisas novas e até mesmo mudar o tipo de serviço).
     O sistema escolar do século XXI é cada vez mais mais voltado para adultos que para crianças e adolescentes. É uma mudança radical do público alvo. Isso é consequência, por  um lado, do declínio das taxas de natalidade e mortalidade, com diminuição da percentagem de jovens e aumento da de adultos e idosos na população total, e, por outro lado, das alterações no mercado de trabalho com a revolução informática, robótica e organizacional, que ocasiona uma constante necessidade de reciclagem da mão-de-obra. Ninguém mais ficará a vida inteira "aplicando" o que aprendeu na escola profissionalizante ou na faculdade, como ocorreu até o final do século XX. Um professor, um engenheiro eletrônico ou um médico formados há três ou quatro anos já estão desatualizados, desde que não se reciclem, não participem de congressos, seminários ou cursos de atualização (inclusive por computadores, via internet), não leiam obras novas, não continuem enfim a aprender e a se atualizar. E isso ocorre ou tende a ocorreu com praticamente todas as profissões, devido às rápidas e inevitáveis mudanças nos processos produtivos, nas técnicas, nos equipamentos, nos métodos, na concepção por trás da atividade5. Vamos citar um exemplo banal: o datilógrafo (profissão em vias de extinção, típica da primeira e em especial da segunda revolução industrial) vai sendo substituído pelo digitador (que, aliás, também vai sendo substituído pelo programador ou analista), que trabalha com um computador no lugar da antiga máquina de escrever. É lógico que essas duas profissões são pouco qualificadas, exigindo no máximo um nível médio de ensino, mas elas servem como ilustração didática. Pois bem, a mudança do datilógrafo  para o digitador não consiste somente nem principalmente na mudança do equipamento; ela consiste, antes de mais nada, numa nova concepção de trabalho. No lugar do serviço repetitivo, no qual o datilógrafo aplicava durante o resto da vida o que aprendeu num cursinho técnico, temos agora um novo profissional que necessita se reciclar continuamente: ontem ele usava o programa Word.2, hoje o Word.7 ou o Office 2000  e dentro de alguns meses um novo programa de edição de texto mais avançado (e provavelmente também uma nova planilha eletrônica, novos programas específicos para a firma na qual trabalha, etc.) e assim sucessivamente; ou seja, ao invés de somente aplicar o que aprendeu antes, na escola na própria firma (quando foi treinado), ele agora tem que se atualizar a cada ano, ler novos manuais (sob a forma de texto ou on-line), fazer cursos de reciclagem. E isso até mesmo num tipo de serviço tão banal quanto o de digitador! Imagine então outras profissões, que demandam maiores estudos: elas também começam a demandar reciclagens mais freqüêntes e mais profundas. No Japão, por exemplo, desde os anos 1980 que determinados profissionais – médicos, dentistas, professores e outros – são obrigados, por lei, a fazerem cursos de reciclagem no mínimo a cada 3 anos sob a pena de perderem a licença, isto é, o direito de continuar exercendo a profissão.
     Outra mudança importante na escolarização é que já nesta primeira década do século XXI  mais da metade (54% nos Estados Unidos) dos novos empregos oferecidos a cada ano nas sociedades industrializadas vão exigir no mínimo o terceiro grau, isto é, uma formação universitária6. A Primeira Revolução Industrial exigiu somente o primário, a alfabetização básica para as massas; a Segunda Revolução Industrial, por sua vez, requereu crescentemente o ensino médio e particularmente técnico; e agora, a Terceira Revolução Industrial começa a exigir de forma crescente o ensino de nível universitário para a maioria das pessoas. Só que não importa mais, pelo menos não muito, o tipo de diploma que um indivíduo recebe, o tipo de curso que escolheu. O fundamental agora é a formação da pessoa (não confundir com o currículo escolar ou lista de disciplinas cursadas) e não o seu título. Mais importante que "macetes" ou informações é aprender a aprender, é saber se virar sozinho, saber pensar por conta própria, tomar decisões, ter criatividade, raciocínio lógico e senso crítico bem dosado. Por isso, citando alguns exemplos, tanto faz se o profissional tem ou não um diploma de jornalista (para escrever em jornais ou revistas), de geólogo ou biólogo (para realizar estudos de impacto ambiental de um dado projeto), de administrador de empresas (para gerir uma firma ou uma instituição pública) e assim por diante. Outros profissionais, com diplomas diferentes, poderiam (ou não) escrever melhor, ou fazer um  estudo ambiental mais adequado, ou gerenciar com melhor desempenho uma empresa, ou outra coisa qualquer, pois o fundamental é a capacidade de iniciativa, de pesquisar e ter idéias novas, de se atualizar constantemente, sendo secundário as informações e os macetes aprendidos na escola.
       E, por fim, temos na atualidade uma renovada importância social da escola, que de auxiliar relativamente secundário passou a alicerce básico da modernidade. O sistema escolar na Primeira e mesmo na Segunda Revolução Industrial era uma instituição necessária mas não decisiva, considerada muitas vezes até como relativamente dispensável frente a outras prioridades (as econômicas no sentido de produção industrial, comercial ou agrícola, ou então as militares). Hoje esse entendimento mudou, pelo menos nos países mais desenvolvidos, ou vem mudando de forma crescente no mundo inteiro. Atualmente, é uma verdade óbvia que a chave para um desenvolvimento tecnológico e econômico nos moldes da Terceira Revolução Industrial encontra-se num ótimo sistema escolar. A escolarização integral (de manhã e à tarde, com no mínimo 7 horas de aulas diárias por aluno) e de boa qualidade (com escolas equipadas com laboratórios, bibliotecas, computadores para uso dos alunos e professores, videotecas, programas obrigatórios de estudos do meio, docentes bem formados e bem remunerados, que se reciclam constantemente, etc.) tornou-se no segredo do sucesso para uma sociedade que procura acompanhar a revolução técnico-científica. O sistema escolar sem nenhuma dúvida é essencial tanto para a qualificação da nova força de trabalho (e a sua constante reciclagem) quanto para a inovação tecnológica, mola propulsora da economia avançada do século XXI e que se apoia sobre uma base indispensável de uma ótima escola elementar, média e universitária (incluindo-se aqui, obviamente, a pós-graduação, a pesquisa e os diversos programas de atualização, especialização, divulgação de novas idéias e técnicas, etc.).

     6. E como fica o ensino da geografia?

       E o ensino da geografia, em especial a nível elementar e médio, como se situa nesse nova ordem das coisas? Ele é dispensável, tal como o latim, como apregoaram alguns nos anos 60 ou 70?  Ou ele adquire um novo e importante papel com as novas tendências do mercado de trabalho, com a globalização e a  Terceira Revolução Industrial?
      A bem da verdade, o ensino da geografia atravessou de forma capenga a Segunda Revolução Industrial, especialmente no seu apogeu ou época áurea. Esse ensino foi gerado ou promovido pela Primeira Revolução Industrial, na época da construção dos Estados-nações e da necessidade de desenvolver um nacionalismo exarcebado. Com o avanço do fordismo e em especial com a crescente internacionalização da economia, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, essa disciplina escolar nacionalista e voltada para a memorização sofreu muito e quase não sobrevive. Em alguns países – principalmente nos Estados Unidos, a grande potência econômica da Segunda Revolução Industrial e pátria do fordismo! –, essa disciplina foi até retirada dos currículos escolares nos níveis elementar e médio, sendo fragmentada e incluída junto com a história e a sociologia (também caricaturadas)  sob o rótulo de
"estudos sociais".  Num modelo de escola técnica e essencialmente mercantil, como ocorreu em especial nas décadas de 50, 60 e 70, as humanidades em geral foram relegadas a um segundo plano e a disciplina geografia, em quase todo o mundo, ou foi abolida enquanto matéria autônoma ou então teve a sua carga horária diminuída em prol do aumento das horas dedicadas à matemática, às ciências ou às disciplinas ditas profissionalizantes (ferramentaria, artes manuais, desenho técnico, contabilidade, técnicas de secretariado, taquigrafia e até datilografia!).
     Mas a Terceira Revolução Industrial veio mudar esse quadro. Basta lembrar que recentemente, no início dos anos 90, os Estados Unidos aboliram a disciplina "estudos sociais" e colocaram novamente a geografia nas escolas elementares e médias, inclusive com uma maior carga horária; e isso não por acaso foi feito num momento em que as autoridades desse país perceberam que havia a necessidade de reformular o seu sistema escolar, pois um dos segredos do maior dinamismo econômico de alguns países nos anos 70 e 80 (Japão e Alemanha, notadamente, mas também Coréia do Sul e outros) estava justamente na qualidade do ensino em geral. Basta lembrar ainda da constante preocupação das autoridades educacionais do Japão ou da Coréia, que realizaram vários intercâmbios e trocas de experiências no tocante ao ensino da geografia com inúmeros países (até com o Brasil!), seja pagando milhares de bolsistas para realizarem estudos in loco, seja convidando profissionais do resto do mundo para dar palestras ou cursos com novas idéias. Isso sem falar dos inúmeros programas (softwares) educativos voltados para renovar ou auxiliar o ensino de geografia, que foram criados nos últimos anos e estão já sendo comercializados ou em vias de ser.
      Para entendermos esse renovado interesse pelo ensino da geografia, temos que recordar alguns outros aspectos interligados (e mesmo indissociáveis) à Terceira Revolução Industrial: globalização e criação/expansão de mercados regionais, nova ordem mundial com uma multipolaridade e novos conflitos e tensões, com um declínio relativo dos Estados-nações, enfim com significativas alterações espaciais (que logicamente são sociais), que implicam em desterritorialidade e reterritorialidade.  Na época da Segunda Revolução Industrial, a internacionalização da economia era feita "pelo alto", através principalmente das empresas multinacionais ou de acordos interestatais, sendo que a maioria da população não precisava participar (a não ser passivamente, como consumidores de mercadorias ou hábitos gerados no exterior), não precisava de fato conhecer algo sobre os outros países e regiões e sequer falar um idioma estrangeiro. Mas a globalização dos dias atuais é diferente, ela envolve multidões no mundo inteiro, inclui uma participação mais ativa no mínimo das classes médias, ela inclusive vai muito além das empresas multinacionais (cujo número cresce a cada dia) e dos Estados, envolvendo agora organizações mundiais não-governamentais e decisões individuais que prescindem das autoridades nacionais. As telecomunicações – veja-se o caso dos fax ou dos e-mails, que podem enviar em segundos mensagens ou ilustrações para todos os países sem nenhum controle, e de redes de computadores mundiais, onde qualquer um pode participar –, juntamente com os fluxos eletrônicos de capitais (qualquer um, no mundo inteiro, desde que disponha de recursos pode virar acionista de uma empresa da Coréia, da China ou do Peru), do aumento do turismo internacional (em 2000 já eram 550 milhões de pessoas por ano, contra apenas 35 milhões em 1960) e das volumosas migrações de um país para outro, fazem com que hoje seja muito mais necessário aprender geografia, isto é, compreender o mundo em que vivemos. A globalização afeta a praticamente todos atualmente, com maior ou menor intensidade, e não existe mais nenhum lugar ou região que não dependa do mundial, sendo este último mais do que a mera soma dos inúmeros lugares. Mais do que nunca, hoje é uma necessidade imperiosa conhecer de forma inteligente (não decorando informações e sim compreendendo os processos, as dinâmicas, os potenciais de mudanças, as possibilidades de intervenção) o mundo em que vivemos, desde a escala local até a nacional e a mundial. E isso, afinal de contas, é ou deveria ser ensino de geografia.
     Mas que tipo de geografia é apropriada para o século XXI? É lógico que não é aquela tradicional baseada no modelo "A Terra e o Homem", onde o objetivo era a memorização de  informações sobrepostas – sobre as unidades relevo, os clima, os fusos horários, as cidades, os produtos agrícolas e onde eram cultivados, etc. – que dizem respeito a determinados aspectos pré-definidos de países ou continentes. E logicamente que também não é aquele outro modelo que procura "conscientizar" ou doutrinar os alunos, na perspectiva de que haveria um esquema já pronto de sociedade futura – o socialismo  –, que substituiria o capitalismo e representaria o paraíso enfim realizado na Terra. Não, nada disso. Ficou claro já pela exposição anterior que a escola da revolução técnico-científica não é a que dá receitas, conceitos e muito menos modelos prontos; não é a que meramente substitui um conteúdo tradicional por um outro já esquematizado e pré-definido, mesmo que pretensamente revolucionário. E tampouco é uma escola no qual o ensino da geografia pode omitir o estudo da dinâmica da natureza e da questão ambiental. Pelo contrário, uma das razões do renovado interesse pelo ensino da geografia é que, na época da globalização e da “diminuição do tamanho” do planeta, do encurtamento das distâncias enfim, a questão da natureza e os problemas ecológicos tornaram-se prementes e mundiais ou globais. Eles adquiriram um novo significado, uma renovada importância (muito maior que na época da Primeira e mesmo da Segunda Revolução Industrial)  e despertam uma crescente interesse ativo por parte do público em geral. É evidente, hoje em dia, que o futuro da humanidade está ligado, entre outras coisas, a um novo relacionamento – mais saudável, menos depredador – com a natureza. O ensino da geografia no século XXI, portanto, deve ensinar – ou melhor, deixar o aluno descobrir – o mundo em que vivemos, com especial atenção para a globalização e para a escala local (do lugar de vivência dos alunos), deve enfocar criticamente a questão ambiental e as relações sociedade/natureza (sem embaralhar a dinâmica de uma delas na outra), deve realizar constantemente estudos do meio (para que o conteúdo ensinado não seja meramente teórico ou "livresco" e sim real, ligado à vida cotidiana das pessoas) e deve levar os educandos a interpretar textos, fotos, mapas, paisagens, problemas sócio-espaciais enfim. É por esse caminho, e somente por ele, que a geografia escolar vai sobreviver e até mesmo ganhar novos espaços nos melhores sistemas educacionais. Isso posto, cabe agora uma ressalva: as condições – ou os potenciais – para que o ensino da geografia adquira uma maior importância social estão postas. Só que isso não significa que isso vá necessariamente ocorrer. A história, afinal, não é feita apenas pela lógica (ou necessidade), pelas condições objetivas, mas também pela contingência, pelo entrecruzamento de projetos, de ações que se influenciam mutuamente e conduzem a um resultado não previsto. Exemplificando: enquanto que nos Estados Unidos (e em alguns outros lugares), ocorreu uma valorização do ensino da geografia nas escolas fundamentais e médias na década de 1990, na França (e talvez em alguns outros lugares, inclusive alguns estados brasileiros) ocorreu o inverso, com uma diminuição da carga horária desta disciplina e a introdução de outras – economia e geologia –, que ficaram encarregadas do estudo de certos conteúdos que teoricamente caberiam à geografia escolar (globalização e mercados internacionais, paisagens naturais e problemas ambientais, etc.). Isso significa, em nosso ponto de vista, que mesmo que a disciplina escolar geografia seja desvalorizada, existe no sistema escolar uma necessidade imperativa de se enfatizar alguns temas, econômico-sociais e ambientais, ligados ao conhecimento do mundo em que vivemos, que são cada vez mais essenciais para qualquer cidadão deste (novo?) mundo globalizado.
     Assim sendo, torna-se quase desnecessário dizer que não há conteúdos "corretos" ou "modelos" prontos de uma geografia escolar para o século XXI. É evidente que existem temáticas essenciais, mas não conteúdos pré-definidos. As opções conteudísticas são inúmeras e não existe a menor necessidade de padronizar, de todos seguirem o mesmo conteúdo ou usarem os mesmos métodos. Padronização ou homogeneização significa tão somente massificação, um procedimento típico da Segunda Revolução Industrial e algo que, no fundo, é o desejo explícito ou implícito de todo autoritário, seja de direita ou de esquerda!  O bom professor deve ser um intelectual no sentido verdadeiro da palavra: alguém que não tem medo de criar, de ousar, de aprender ensinando. No final das contas, esse é o grande segredo de um bom curso, é algo muito mais importante que o diploma ou a formação acadêmica do professor.
     Porém, lamentavelmente, a imensa maioria das discussões ou propostas relativas ao ensino da geografia que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos anos, e quase que todas as iniciativas oficiais (isto é, de órgão burocráticos do governo federal ou de  secretarias estaduais de educação), desconhecem o essencial das mudanças que vêm ocorrendo com a Terceira Revolução Industrial e a globalização. Elas ainda estão presas a idéias ultrapassadas, típicas do fordismo ou, pior ainda, do socialismo real, e não conseguem enxergar as implicações e os imperativos ligados à atual fase da modernidade. Por incrível que pareça, ainda é freqüênte escutarmos reclames do tipo: "Você é de esquerda ou de direita?", identificando "esquerda" como um defensor das idéias que alicerçaram o socialismo real!, ou "Não é tradicional e superado ensinar climas ou solos?", ou então afirmativas do tipo "O bom professor é o que não usa livros didáticos", ou ainda "Temos que evitar a separação entre  natureza e sociedade".
     Todos esses reclames, que na realidade são idéias ou opiniões implícitas e pré-concebidas, demonstram uma enorme confusão teórica, um profundo desconhecimento sobre os novos tempos e o novo papel da escola e do ensino da geografia. Na realidade, são mais slogans ou frases estereotipadas, mas que constantemente surgem sob inúmeras roupagens, inclusive em alguns documentos oficiais. Não convém abandonar o nosso fio condutor (a revolução técnico-científica e seus impactos no sistema escolar e no ensino da geografia) e fazer uma crítica detalhada desses dogmas. Contudo, a título de encerramento deste texto, como uma contribuição aos debates e discussões sobre a renovação da escola e do ensino da geografia, vamos concluir com uma análise sucinta dessas idéias constantemente reproduzidas por alguns que se consideram progressistas.
      Quanto à opção entre "esquerda" e "direita", é evidente que ela é bem menos clara hoje que na época heróica das lutas operárias e do movimento socialista. Essa distinção ainda é parcialmente válida, mas com um significado totalmente diferente do que tinha na época da bipolaridade e da Guerra Fria. Simplificadamente, podemos definir como "esquerda" quem é a favor de mudanças com vistas a uma maior igualdade social, com vistas a uma expansão do espaço democrático, à criação de novos direitos sociais; e "direita" seria o contrário, seria a defesa do status quo e a pouca (ou nenhuma) preocupação com a questão das desigualdades, que é vista como algo “natural”. Visto dessa forma, nos parece óbvio que o tipo de escola e de geografia escolar que propusemos é de "esquerda", ao contrário do que apregoam alguns. Esquerda não no sentido de apontar para o socialismo (essa ilusão de mentes autoritárias que precisam de certezas pré-definidas), algo que pode (e costuma) até significar um Estado totalitário, e sim no sentido de apontar para uma sociedade mais igualitária, com oportunidades e direitos iguais e que respeite as diferenças no lugar de buscar uma homogeneização das pessoas. E, de forma complementar, convém não esquecer que o fundamental numa escola renovada e voltada para desenvolver as potencialidades e o senso de cidadania do educando não é o conteúdo em si e muito menos a linha ideológica deste; pelo contrário, é o procedimento de deixar o aluno encontrar as suas próprias opções e alternativas, deixar ele se tornar um ser autônomo afinal, sem nunca tentar lhe impor nenhuma idéia ou opinião pré-concebida.
     
      Quanto a dizer que o bom professor não deve usar livros didáticos, ou que estes são sempre antipedagógicos e mercantilistas, opinião que é ou era freqüênte nos encontros de geógrafos (o que não impediu de alguns dos arautos dessa visão acabassem por se tornar novos autores de manuais, que por sinal pouco acrescentaram ao que já existia), pensamos que é uma afirmativa sem base de sustentação teórica ou empírica. Essa idéia não tem qualquer fundamentação pedagógico/educacional ou mesmo histórica. Pelo contrário, quando se lê os importantes teóricos da educação (sócio)construtivista, como Piaget ou Vygotsky, o que encontramos é uma crítica aos manuais inadequados ao desenvolvimento psicogenético ou social dos educandos, à necessidade de construir os conceitos (e não apenas recebê-los prontos), mas  não aos manuais em si. E nos melhores sistemas educacionais do mundo, nos quais o aluno fica 7 ou 8 horas por dia na escola e trabalha em laboratórios e com computadores (além de frequentemente sair em estudos do meio organizados pelos professores), o livro didático é inclusive obrigatório, isto é, não existe nenhum aluno que não tenha pelo menos um compêndio para cada disciplina escolar. Sem dúvida que o professor pode e deve comparar manuais, com a mais completa liberdade, de escolher – ou não – o livro didático que quiser. (No caso dos Estados Unidos normalmente existe até a possibilidade dos professores de cada escola elaborarem o seu manual, na gráfica da escola). E os alunos podem e devem pesquisar um tema em vários livros (didáticos ou não) alternativos. Mas apregoar que o bom professor não deve usar compêndios escolares, como fazem – ou melhor faziam, em especial nos anos 80 – algumas proposta curriculares recentes, é um absurdo educacional e até cultural. Isso é, em primeiro lugar,  fruto de um preconceito que deveria ser combatido mas que é incentivado: que livros e outras obras culturais são objetos de pouco valor, dispensáveis frente a outros gastos mais importantes. Aqueles que difundem tal idéia, mesmo sem querer estão contribuindo para rebaixar mais ainda o nível do ensino e da cultura em geral no Brasil, um país com um nível de industrialização comparável ao de muitos países desenvolvidos e com um nível de leituras (tanto per capita como em alguns casos até total) bastante inferior até ao de países bem menos industrializados como Argentina, Uruguai, Chile, Cuba, México, Costa Rica e vários outros. Em segundo lugar, essa idéia normalmente também é tributária da desvalorização das disciplinas geografia e história (e outras: sociologia, filosofia, etc.) operada pela escola da época do fordismo; nessa concepção, seria uma perda de tempo o aluno adquirir livros dessas disciplinas, pois ele deveria se preocupar muito mais (e aí sim ter livros) com a matemática, as ciências e as disciplinas "técnicas", inclusive a lingua portuguesa. Ocorre, todavia, que a época do fordismo e da escola profissionalizante está com seus dias contados e fincar o pé nessa concepção é uma aberração, é advogar um modelo escolar completamente obsoleto. Na escola da Terceira Revolução Industrial, sem dúvida nenhuma que a disciplina geografia é pelo menos tão importante quanto a matemática ou a lingua pátria. Talvez até mais, em alguns casos, pois muito do que se ensina na matemática no ensino médio, por exemplo, nunca terá nenhuma utilidade na vida prática do cidadão em geral, ou então, se tiver, é possível de ser resolvido com o uso de um computador (ou uma calculadora) pessoal, ao passo que a disciplina geografia não trabalha com informações e cálculos (elementos sempre repetitivos e que uma máquina hoje pode reproduzir melhor que o ser humano) e sim com novas idéias e interpretações, com a realidade em si (visitas a fábricas, excursões, estudos do meio, observação da paisagem, interpretação de mapas, gráficos, textos e fotos) e portanto com processos específicos da inteligência humana.
     E, por fim, existem as afirmações de que o estudo dos climas ou dos solos (isto é, da natureza em si) não tem mais sentido no ensino crítico da geografia, ou que sociedade e natureza não podem ser separadas de forma nenhuma. A nosso ver, são duas idéias interligadas e equivocadas, que fundamentam-se na ilusão de que podemos ignorar o real em nome de um ideal supostamente correto. É um desconhecimento das diferenças epistemológicas entre ciências humanas e naturais. É tão somente uma profissão de fé na (pretensa) totalidade do real. Sem dúvida que a sociedade – e não a "Terra", tal como na geografia tradicional, e nem mesmo a natureza em si – é o ponto de partida no ensino renovado da geografia. Mas ainda devemos (e muito!) estudar a natureza em si, os ecossistemas, as interdependências entre o clima e o relevo, o clima e o solo, o solo e a vegetação, as águas, o relevo e o clima, etc. Ou seja, existe sem dúvida uma dinâmica da natureza, que é independente do social (embora possa ser influenciada por ele), e que deve ser compreendida, pois faz parte do espaço geográfico e também de alguns dos grandes dilemas da nossa época.
     Natureza e sociedade se interligam, possuem influências recíprocas, e a sociedade moderna cada vez mais modifica a natureza original, embora sem nunca eliminá-la (o que seria um absurdo –pois o ser humano originou-se da natureza – e provavelmente o final da humanidade!). Nenhum princípio de fé, do tipo “não aceito a separação ou a dicotomia" (como se o real também não tivesse as suas contradições), pode escamotear a realidade, na qual existe uma diferença ou até, em alguns casos, uma oposição entre o social e o natural. É lógico que podemos e devemos integrar o social com o natural no estudo de geografia, mas integração não é o mesmo que homogeneização. E não será nenhuma retórica dogmática que irá modificar esse fato básico, o qual não nos remete de volta à geografia tradicional (ao contrário do que dizem alguns), mas nos coloca novos desafios e alternativas. Mas não é justamente isso – a necessidade de sempre enfrentar novos desafios, de estudar mais, de dar novas respostas a velhas questões, de ousar mudar, de se reciclar constantemente – a tônica o bom professor e até da nova força de trabalho na atualidade? 



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