JOSÉ WILLIAM VESENTINI
“Vocês me perguntam: que acontece com o saber técnico numa ótica ecológica ?(...) Eu diria brevemente que é preciso em primeiro lugar nos desembaraçarmos da idéia da neutralidade da técnica , da técnica como simples instrumento , da falácia segundo a qual poderíamos pôr o mesmo conjunto de meios a serviço de fins diferentes . Vocês sabem que a idéia tradicional da esquerda era de que a técnica que o capitalismo desenvolve ê, em si , neutra (ou mesmo "boa"), que os capitalistas a desviam em seu proveito e bastaria colocá-la a serviço da coletividadef...) A escravidão no trabalho (...) não é somente devida ao fato de que os meios de produção pertencem aos capitalistas ; é que estes meios de produção , estas forças de produção , contém em si todo o programa e toda a história do capitalismo .” (CORNELIUS CASTORIADIS)
“Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente . O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente , na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial , que aparecia sob os traços do progresso técnico , representava uma grande conquista politica(...) O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão . Nele, o trabalho é definido como ‘a fonte de toda a riqueza e toda a civilização’. Esse conceito de trabalho , típico do marxismo vulgar , não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos programas na dominação da natureza , e não aos retrocessos na organização da sociedade . Já estão visíveis , nessa concepção , os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo . Entre eles , figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848(...) Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de natureza , que segundo Dietz-gen, ‘está ali , grátis ’.” (WALTER BENJAMIM )
Marx foi um pensador que colocou em pauta um ambicioso projeto político para o futuro da humanidade como um todo : o socialismo (como etapa do comunismo ), a planificação econômica , o progresso ilimitado com igualdade social . O ecologismo atual em boa medida é herdeiro do pensamento de Marx (e também de Proudhon, de Rousseau, de Kropotkin e inúmeros outros ), propondo entretanto um projeto igual mente ambicioso mas com importantes nuanças frente ao marxista : o respeito às diferenças , a busca de uma tecnologia não agressora do meio ambiente , o estabelecimento de novos valores e necessidades ...
Marx, como já foi assinalado por diferenciados estudiosos (CASTORIADIS, 1982; GORZ, 1982; SCHMIDT, 1976; DUARTE, 1986; e outros ), não é um autor unívoco , de uma linha interpretativa única que tenha se aprimorado com o tempo . Pelo contrário , ele teve as suas contradições (cf. ARENDT, 1981) e até mesmo as suas reviravoltas . Os escritos de juventude , nos quais se fundamentou por exemplo MARCUSE (1973), para analisar as relações humanidade-natureza, sugerem um Marx bastante diferente daquele maduro , tematizado por exemplo por QUAINI (1979), que igualmente estudou nesse autor as relações sociedade-natureza. E quando se recorda da famosa (mas inacabada ) obra Dialética da Natureza , de ENGELS (1974), companheiro inseparável do Marx e fundador com ele do materialismo histórico , fica evidente que tanto em Marx como no marxismo original (isto é, de Marx e Engels) não há uma leitura única e linear sobre a questão ambiental, mas , pelo contrário , várias interpretações distintas.
O marxismo subseqüente veio ampliar ainda mais esse leque de interpretações do materialismo histórico sobre as relações da humanidade com o seu meio ambiente natural . Acreditamos, todavia , que se pode resumir essas interpretações variadas no interior do marxismo em três abordagens principais da natureza: a dialética da natureza , a história natural e social se entrelaçando, e a segunda natureza vista como predominante e absoluta na modernidade.
A rigor , essas três percepções de natureza não se excluem, mas surgiram em contextos distintos e apontam na realidade para conseqüências programáticas diferenciadas.
A dialética da natureza
Vamos examinar , sucintamente , a leitura da natureza como dialética , como forma de movimento . Essa leitura , a dialética da natureza , foi sistematizada por Engels embora seja também seja encontrável em Marx sob a forma de fragmentos , em notas de rodapé de O Capital , em inúmeras cartas enviadas para seu amigo Engels, a quem apoiou nos estudos de geologia , química , matemática , etc., e principalmente nas preocupações de estender a dialética para o domínio do natural . Mas o livro de Engels que tem esse nome na verdade é um rascunho que nunca foi publicado durante a vida do autor . A primeira edição dessa obra é de 1932, portanto trinta e sete anos depois da mor te de Engels. Contudo , apesar da redação não definitiva , da falta de capítulos ou finais de capítulos , a obra não destoa do pensamento marxista , ao menos de algumas de suas variantes e, além do mais , nele são reproduzidas inúmeras idéias que Engels já havia desenvolvido anteriormente no livro O Anti-Dühring, editado em 1878.
A idéia central dessa polêmica obra é a de haver uma dialética (que foi sistematizada em "leis " gerais , retiradas em grande parte de Hegel, a partir de uma simplificação caricatural dos escritos sobre lógica desse filósofo) na natureza em geral , orgânica ou inorgânica , no universo como um todo afinal . A imagem de natureza que surge nessa obra é a de movimento como fundante (como "essência ") do real : espaço e tempo , repouso ou calor , tudo isso seriam apenas formas do movimento. A dialética deixa aí de ser algo eminentemente social e histórico , uma lógica (e ao mesmo tempo uma ontologia ) ligada à ou expressa pela luta de classes , à contradição social com suas determinações , tal como nas principais obras de Marx (e também de Engels), para ser reduzida a algumas "leis universais ". Essas simplistas “leis universais ” da dialética seriam:
- a lei da passagem da quantidade à qualidade , e vice-versa ;
- a lei da interpenetração dos contrários ;
- a lei da negação da negação (ENGELS, 1974: 49-56).
Na verdade , acreditamos que o significado mais profundo dessa dialética da natureza esteja numa opção política do velho Engels, que a adotou após o fracasso da I Internacional e a morte de Marx. Essa opção política , praticamente uma nova leitura do capitalismo diferente dos escritos do jovem Engels e mesmo do Marx maduro , foi iniciada por Engels e continuada por herdeiros como Kautsky. Trata-se da social-democracia, ou seja, a esperança na mudança "natural " do capitalismo (isto é, sem uma revolução violenta ), que se transformaria de forma progressiva em socialismo sem o uso da violência , sem uma revolução nos moldes da francesa. Isso ocorreria pela política social do Estado e mesmo pela melhoria gradativa dos padrões de vida dos trabalhadores com o desenvolvimento do capitalismo , algo que o velho Engels, que vivia na Inglaterra, já podia observar à sua volta . Seria algo como a “lei dialética ” da passagem do quantitativo ao qualitativo , ou em outras palavras , o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo conduziria no seu próprio movimento quantitativo a uma mudança de qualidade , à passagem de um modo de produção para outro . A dialética da natureza , assim , seria uma legitimação – com o uso (caricaturado) da dialética de Hegel – para uma opção política social-democrata.
No entanto , apesar de justificável como fundamentação "científica", nos moldes do século XIX com a sua fé na ciência natural , para a política reformista social-democrata, essa dialética da natureza teve uma continuação lamentável e até fanática na época stalinista da União Soviética com o lissenkismo (cf. CERUTI, 1987). Se no velho Engels e discípulos a dialética da natureza alicerçava implicitamente um engajamento na luta parlamentar , inclusive com uma valorização da democracia representativa, no stalinismo, pelo contrário , essa doutrina servia tão-somente para ampliar a dominação totalitária até o campo da ciência , das artes e da filosofia . Nas palavras de um estudioso desse assunto , temos que :
“Com Stalim e em geral com o stalinismo surge sobre esta base a superstição da objetividade inquebrantável das leis históricas, as quais operam com independência da vontade dos homens e não se diferenciam em nada das leis da natureza . Não é casual que a ideologia oficial soube conciliar durante longos anos este objetivismo acrítico com o subjetivismo mais tosco , como ocorreu no assim chamado culto da personalidade de Stalin: os dois lados são complementares ." (SCHMIDT, 1976).
A natureza como história
Uma outra interpretação marxista sobre a natureza é aquela que podemos denominar historicista. Ela surgiu – ou pelo menos assumiu uma forma acabada – com a obra de Marx e Engels Idelogia Alemã, escrita em 1845. Essa obra – assim como a Dialética da Natureza , de Engels – nunca foi publicada durante a vida dos autores , mas apenas nos anos 1930 na União Soviética stalinista. Existe nesse livro um trecho com uma famosa frase que sintetiza essa leitura da natureza : "Conhecemos apenas uma única ciência , a ciência da história . A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens ..." (MARX e ENGELS, 1980, vol. I: 18).
É interessante registrar que essa frase , juntamente com algumas outras, foi riscada pelos autores no manuscrito original . Eles pretenderam de início publicar esse trabalho , mas acabaram desistindo após algumas dificuldades em encontrar um editor e principalmente , segundo argumentaram posteriormente , porque essas idéias serviram somente como “amadurecimento intelectual ”. Convém notar que essa leitura da natureza como histórica , história natural , é tributária do evolucionismo clássico . Como se sabe, Darwin foi um autor lido, relido e efusivamente elogiado por Marx, que até pretendeu lhe dedicar O Capital , com o argumento que ele , Marx, teria feito para o "reino do social " o mesmo trabalho intelectual – uma verdadeira “revolução ” na concepção dos seres vivos , no caso de Darwin – que o famoso biólogo havia feito para o "reino natural ".
Nessa leitura , a história da natureza precederia a história da humanidade , porém , uma vez que esta última houvesse atingido um elevado grau de desenvolvimento tecnológico (o que ocorreu com o advento do capitalismo, da modernidade afinal ) e agisse cada vez mais eficazmente no sentido de modificar a natureza , a história natural ficaria subordinada à história social , seria uma parte integrante desta. A grande preocupação dessa linha interpretativa não é evidentemente o estudo da natureza em si , mas basicamente a fundamentação do socialismo como continuação lógica do capitalismo , como "etapa " histórica posterior e mais avançada numa compreensão evolucionista . Um outro trecho clássico de Marx aclara melhor esse fato :
“O chamado desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento , e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica , e isso em condições bem determinadas -concebe-os sempre sob um aspecto unilateral . A religião cristã só pôde ajudar a compreender objetivamente as mitologias anteriores depois de ter feito , até certo grau , por assim dizer dynamei, a sua própria crítica . Igualmente , a economia burguesa só conseguiu compreender as sociedades feudais, antiga , oriental , quando começou a autocrítica da sociedade burguesa(...) A anatomia do homem é a chave da anatomia do maca co. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário , ser compreendido senão quando se conhece a forma superior . A economia burguesa fornece a chave da economia da Antigüidade, etc.” (MARX, 1974).
As referências à natureza , como se percebe, são voltadas essencialmente não para a sua compreensão efetiva e sim para (pretensamente ) aclarar o social , para fundamentar uma visão "etapista" ou evolucionista da sociedade na qual a história seria uma seqüência de modos de produção , de estágios que , a partir da análise crítica do capitalismo que evidenciasse as suas contradições , mostraria que existe uma lógica teleológica do inferior para o superior , do feudalismo para o capitalismo e deste para o socialismo . Assim , as “leis ” da história produziriam as contradições do capitalismo que – como a célebre evolução do macaco ao homem , tão polemizada no século XIX – conduziriam ao socialismo , uma etapa pós-capitalista nascida a partir do término da dominação burguesa. Entretanto , o aprofundamento da análise da natureza mesma não teve grandes prosseguimentos nessa linha interpretativa da "história natural ", dentro do marxismo .
Esta terceira leitura da natureza pelos clássicos do Marxismo , a natureza como recurso que o trabalho humano reelabora, foi a que predominou – e ainda predomina, nos restritos círculos marxistas que ainda existem nos dias de hoje . Na verdade , essa concepção que vê a natureza , o "reino natural ", essencialmente como segunda natureza , como matéria reelaborada pelo trabalho humano , foi a percepção mais desenvolvida – e mais rica – no interior da produção marxiana e marxista .
O conceito de trabalho é fundamental nessa linha interpretativa , nessa compreensão da natureza . Mas não é o trabalho da natureza – dos ventos , das formigas , da energia afinal –, tal como na Dialética da Natureza , de Engels, que entendeu o conceito de trabalho de acordo com a ciência natural , especialmente a física . Pelo contrário , nesta outra leitura o trabalho seria uma atividade (a mais “nobre ”) específica do ser humano . Seria um trabalho basicamente social , essencialmente voltado para dominar a natureza numa acepção cartesiana. Seria uma atividade realizada a partir do esforço físico (auxiliado pela tecnologia ) norteado pela razão , pela inteligência humana . "O que distingue a melhor abelha do pior arquiteto ", assinalou Marx, "é que este último planeja o que vai fazer antes de realizar a obra ". A racionalidade, assim , passa a ser condição sine qua non para o trabalho , para a própria condição humana . Racionalidade tida como exclusivamente humana , sendo que a natureza é vista como “coisa ”, como o reino dos objetos inanimados ou orgânicos sem racionalidade .
O socialismo como utopia seria não apenas uma sociedade igualitária , mas igualmente um espaço totalmente humanizado, onde uma segunda natureza construída sob planos e métodos científicos teria substituído a natureza selvagem ou caótica do passado . O trabalho , dessa forma , passa a ter um papel histórico teleológico e redentor : é por intermédio dele que os homens construirão a utopia , o socialismo [1], momento em que o trabalho acumulado (isto é, o desenvolvimento das forças produtivas) permitirá o reino da abundância e não mais existirão aqueles que vivem da exploração do trabalho alheio .
Existe aí uma detalhada explicação das características e das etapas do processo do trabalho : desde a idéia de trabalho abstrato e socialmente necessário , que fundamente a noção de exploração da força de trabalho por intermédio da mais-valia , até os objetos de trabalho (natureza ou terra ) e os meios ou instrumentos de trabalho (tecnologia ), donde emergiria um "ardil do trabalho " pelo fato de a racionalidade humana compreender as "leis " dos objetos de trabalho e, por intermédio da técnica , "dominar por dentro " esses objetos que nesse processo seriam reproduzidos pelo trabalho humano (cf. DUARTE, 1986: 61-68).
Esta leitura marxista da produção de uma segunda natureza forneceu subsídios valiosos para se interligar a economia de mercado com a degradação ambiental. Entretanto , ela também engendrou equívocos na interpretação das reivindicações e dos movimentos ambientalistas ou ecológicos . Veremos isso a seguir .
O marxismo e as lutas ambientais
“Do ponto de vista de uma formação econômica superior , a propriedade privada da terra , por parte de alguns indivíduos , parecerá tão absurda como a propriedade privada de um homem por parte de outro homem . Mesmo uma sociedade inteira , uma nação e mesmo todas as sociedades de uma mesma época , tomadas em conjunto , não são proprietárias da terra . São somente seus possessores, seus usufrutuários , e têm o dever de deixá-la melhorada, como boni patri famílias , às gerações sucessivas.” (Marx apud QUAINI, 1979).
O único problema é que essa notável consciência de a natureza não ter dono legítimo (nem mesmo uma nação inteira , o que deveria servir para muitos marxistas nacionalistas – uma categoria indubitavelmente absurda para o internacionalista Marx, mas que predomina no Brasil e na América Latina em geral – repensarem suas posições "anti-ingerência externa " sobre a Amazônia) é acompanhada por uma fé inquebrantável na ciência e no seu poderio sobre o mundo material . Marx nunca foi um crítico da ciência e tampouco da tecnologia – e, mais do que isso , sempre foi fiel à sua crença no “progresso ”, no desenvolvimento das forças produtivas não importa a que preço ambiental.
Há ainda outros trechos importantes nesse clássico :
“O capitalismo , em sua expansão , revoluciona a agricultura , destruindo o baluarte da velha sociedade , o camponês , substituindo-o pelo trabalhador assalariado . As necessidades de transformação social e a oposição de classes no campo são assim equiparadas às da cidade . Os métodos rotineiros e irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação cons ciente , tecnológica , da ciência (...) Com a preponderância cada vez maior da população urbana que se amontoa nos grandes centros , a produção capitalista por um lado concentra a força motriz da sociedade e, de outro lado , perturba o intercâmbio material entre o homem e a terra , isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano .” (MARX, 1974).
É uma crítica da urbanização e das radicais mudanças no meio rural . O problema é que essa crítica se dirige não aos aspectos ambientais em si , mas basicamente às injustiças sociais , às desigualdades entre as classes . O socialismo de acordo com Marx, é importante ressaltar , não vai desurbanizar a humanidade e muito menos produzir um retorno a essa “velha sociedade ” onde existia o camponês . O capitalismo é visto como uma condição necessária , como produtor de mudanças irreversíveis , mudanças essas que – com exceção das desigualdades sociais – constituem o progresso , o desenvolvimento das forças produtivas imprescindível para o advento da etapa histórica seguinte (o socialismo ).
A artificialidade das necessidades , que passam a serem fabricadas em grande escala pelo capitalismo , também foi uma outra constatação desse teórico :
“Por outro lado a produção de mais-valia relativa baseada sobre o aumento e desenvolvimento das forças produtivas, exige a produção de novos consumos ; isto é, exige que o círculo do consumo no âmbito da circulação se alargue do mesmo modo que antes se alargava o círculo da produção . Em primeiro lugar : uma ampliação quantitativa do consumo existente; em segundo lugar : a criação de novas necessidades mediante a propagação das já existentes numa esfera mais alargada; em terceiro lugar : a produção de necessidades novas e a descoberta e a criação de novos valores de uso (...). Disto advém a exploração sistemática da natureza para descobrir novas propriedades úteis nas coisas ; a troca universal dos produtos de todos os climas e de todos os países ; a nova (artificial) preparação dos objetos naturais , mediante a qual lhe são conferidos novos valores de uso ; a exploração completa da terra para descobrir tanto objetos úteis novos , quanto novas propriedades úteis dos velhos , ou então suas propriedades como matérias-primas, etc." (Marx apud QUAINI, 1979).
Dessa forma , o capitalismo é questionado tanto por explorar o proletariado como também , e de forma interligada, por rapinar a natureza , a terra , por gerar necessidades artificiais e exigir intensa exploração irracional dos recursos . Mas o fundamental realmente é a relação homem-homem, a exploração social consubstanciada através da mais-valia (relativa e absoluta ). E a essência dessa exploração estaria na apropriação social capitalista dos meios de produção , na propriedade privada em suma . Engels, a esse respeito , não deixou dúvidas :
“A solução da questão da habitação não traz consigo a solução da ques tão social , mas , ao contrário , somente a solução da questão social , isto é, a abolição do modo de produção capitalista tornará ao mesmo tempo possível a solução da questão da moradia .” (Engels apud QUAINI, 1979).
Essa argumentação reducionista foi – e às vezes ainda é, embora com muito menos freqüência – reproduzida ad nauseam pelos marxistas-leninistas em relação às reivindicações feministas , dos afro-descendentes, dos ecologistas e inúmeras outras. Seriam todas “contradições não essenciais ”. O fundamental seria combater o capitalismo , a apropriação privada dos meios de produção – a chamada "contradição principal " da nossa sociedade –, sendo que os "demais problemas " – isto é, essas "contradições secundárias" – seriam resolvidos após a instauração do modo de produção socialista . Seriam na verdade pseudo-problemas, ou epifenômenos, às vezes até chamados de “pequeno-burgueses”, que automaticamente a sociedade sem classes solucionaria. Veja-se este lapidar exemplo :
“Antes de mais nada fica claro que as contradições ecológicas e territoriais devem ser conduzidas aos mais profundos antagonismos do modo de produção capitalista e que para elas não pode haver superação real a não ser como superação das relações de produção e portanto de toda a organização social e territorial do capitalismo .” (QUAINI, 1979).
“A resposta de Marx às concepções ecológicas(...) era já muito clara antes que elas surgissem: para a superação das contradições do capitalismo é necessário que o pleno desenvolvimento das forças produtivas te nha se tomado uma condição da produção , e não que determinadas condições de produção sejam colocadas como limites do desenvolvimento das forças produtivas.” (Idem : 136, grifos nossos )
A fé no progresso , no "desenvolvimento das forças produtivas", é basilar nesse marxismo ortodoxo . O grande problema residiria na apropriação privada , na irracionalidade burguesa. A racionalidade científica , no entanto , carregada pelo socialismo , viria prosseguir com esse progresso , construindo uma segunda natureza sem esse "desequilíbrio" capitalista que se deve à exploração social e à ausência de um verdadeiro planejamento . Um pensamento desse tipo , como se percebe, é incapaz de analisar e criticar os problemas da economia planificada, tampouco os desastres ambientais gerados pelo socialismo real . Seria isso talvez um prosseguimento temporão do iluminismo ? O fato é que essa posição que não reconhece limites no desenvolvimento econômico , na tecnologia , no domínio da humanidade sobre a natureza , é freqüente e – pelo menos foi, até há alguns anos – inclusive hegemônica no marxismo .
“Ao invés de dominação da natureza , devemos, portanto , considerar o processo muito mais complexo de produção da natureza . Enquanto o ar gumento da dominação da natureza sugere um futuro sombrio , unidimensional e livre de contradições , a idéia de produção da natureza sugere um futuro histórico que ainda está para ser determinado (...) Através do trabalho humano e da produção da natureza na escala global , a sociedade humana colocou-se no centro da natureza . Desejar coisa diferente é nostálgico. Precisamente esta centralidade da natureza é o que impulsiona a louca busca do capital , realmente para controlar a natureza , mas a idéia de controle sobre a natureza é um sonho (...) Verdadeiramente humano , o controle social sobre a produção da natureza , contudo , é o sonho realizável do socialismo .” (SMITH, 1988, grifos nossos ).
O que surpreende nesses autores , e vários outros semelhantes , é a total ausência de referência ao socialismo real , ou seja, aos enormes problemas de poluição e degradação ambiental nesses países de economia planificada que em tese seguem os ensinamentos de Marx. Sem essa explicitação, suas referências ao socialismo (que socialismo ? e que economia diferente da de mercado ?) como redentor das relações homem-natureza ficam vagas , ambíguas (de forma proposital ?), não se sabendo exatamente o que significa "superar " o modo de produção capitalista e porque essa mesma ciência e tecnologia capitalistas, ao serem operacionalizadas no "modo de produção socialista ", irão gerar efeitos opostos do ponto de vista ambiental. Em suma , por que a “produção da natureza ” – noção que nos parece problemática – é negativa no capitalismo , na economia de mercado , e ao mesmo tempo positiva no socialismo , na economia planificada? Será apenas porque nessa sociedade-outra os técnicos e cientistas “qualificados” (isto é, os autores dessas barbaridades ) supostamente estarão no poder e também supostamente poderão exercitar à vontade , sem as imposições dos políticos com poder de decisão ou dos donos dos meios de produção , as suas receitas para o planejamento ? Conhecemos essa história : a experiência dos diversos totalitarismos do século XX nos mostrou de forma cabal que tipo execrável de sociedade é essa, na qual alguns “iluminados”, detentores de um saber “superior ” (o marxismo ), mandam e desmandam à vontade .
Ecologismo e Crise do Marxismo
O marxismo , contudo , transformou-se enormemente no transcorrer do século XX e em especial nas últimas décadas . Pouco a pouco ele deixou de ser uma tentativa ousada de pensar o capitalismo e o futuro do social , como expressão do movimento operário , para se tornar quase que tão somente um discurso ideológico da burocracia que ou está no poder (num Estado ou em micropoderes como escolas , asilos , partidos , aparelhos estatais isolados, etc.) ou almeja a tal (cf. CASTORIADIS, 1982.). E assim como as grandes corporações capitalistas em grande parte já incorporaram o discurso ecologista (e até lucram com ele !), também o marxismo burocratizado poderá lograr tal fato . Mas a grande questão é se isso basta , se o imperativo dos limites do atual sistema produtivo e tecnológico , extremamente militarizado e degradador do meio ambiente , não irá demonstrar historicamente que desenvolvimento do capitalismo (burocratizado ou não ) e preservação ambiental são elementos que se contradizem, como argumentam os ecologistas mais radicais .
ARENDT, H. A condição humana . São Paulo, Forente/Edusp, 1981.
* Palestra proferida em 1986 durante uma Semana de Geografia em Rio Claro (SP). Também texto de uma aula do curso Conservação dos Recursos Naturais , que lecionamos na USP de 1986 até 1988. Uma versão modificada deste texto foi publicada como um capítulo do livro Geografia , Natureza e Sociedade (editora Contexto , 1989, pp. 41-50).
[1] Inúmeros autores demonstraram as origens religiosas (via Hegel, um ardoroso cristão ) desse projeto destina do a redimir a humanidade por intermédio de um "messias " (o proletariado ) e de um instrumento básico (o trabalho , que desempenha nessa doutrina um papel semelhante ao da vida sem pecados no cristianismo ; ou seja, é a atividade humana nobre por excelência , que levará no final das contas ao "paraíso " do futuro ). Cf., entre outros , GORZ, 1982, e KOLAKOWSKI, 1985.
[2] Veja-se como exemplo dessa atitude o texto de TRAGTEMBERG, 1974.
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