Jesus o Bom Pastor

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24 agosto 2010

MARXISMO E NATUREZA*


JOSÉ WILLIAM VESENTINI

Vocês me perguntam: que acontece com o saber técnico numa ótica ecológica?(...) Eu diria brevemente que é preciso em primeiro lugar nos desembaraçarmos da idéia da neutralidade da técnica, da técnica como simples instrumento, da falácia segundo a qual poderíamos pôr o mesmo conjunto de meios a serviço de fins diferentes. Vocês sabem que a idéia tradicional da esquerda era de que a técnica que o capitalismo desen­volve ê, em si, neutra (ou mesmo "boa"), que os capitalistas a desviam em seu proveito e bastaria colocá-la a serviço da coletividadef...) A es­cravidão no trabalho(...) não é somente devida ao fato de que os meios de produção pertencem aos capitalistas; é que estes meios de produção, estas forças de produção, contém em si todo o programa e toda a história do capitalismo.”   (CORNELIUS CASTORIADIS)

Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto co­mo o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí ha­via um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os tra­ços do progresso técnico, representava uma grande conquista politi­ca(...) O Programa de Gotha continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como ‘a fonte de toda a riqueza e toda a civi­lização’. Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhado­res que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progra­mas na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráti­cos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma con­cepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialis­tas anteriores a março de 1848(...) Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de natureza, que segundo Dietz-gen, ‘está ali, grátis’.”                                                 (WALTER BENJAMIM)

Por que enfocar Marx e o marxismo num estudo sobre a problemática ecológica? Ora, Marx é um clássico fundante do pensamento social crítico: ele é ao mesmo tempo um analista, um propagador entusiasta e um crítico da modernidade capitalista. É extremamente difícil hoje [isto é, em 1987-8] trabalhar a questão da sociedade modernaou sociedade capitalista, ou industrial –  em suas relações com a natureza sem fazer referência a Marx e ao marxismo. Perto de um terço da humanidade, em nossos dias, vive em países que afirmam seguir os ensinamentos do marxismo. E convém recordar que boa parte dos movimentos ecológicos nasceu da crise do marxis­mo, das tentativas de superação do capitalismo que evitam cair na apologia do socialismo real.
Marx foi um pensador que colocou em pauta um ambicioso proje­to político para o futuro da humanidade como um todo: o socialismo (como etapa do comunismo), a planificação econômica, o progresso ilimitado com igualdade social. O ecologismo atual em boa medida é herdeiro do pensamento de Marx (e também de Proudhon, de Rous­seau, de Kropotkin e inúmeros outros), propondo entretanto um projeto igual­mente ambicioso mas com importantes nuanças frente ao marxista: o respeito às diferenças, a busca de uma tecnologia não agressora do meio ambiente, o estabelecimento de novos valores e necessidades...
Marx, como foi assinalado por diferenciados estudiosos (CASTORIADIS, 1982; GORZ, 1982; SCHMIDT, 1976;  DUARTE, 1986; e outros), não é um autor unívoco, de uma linha interpretativa única que tenha se aprimorado com o tempo. Pelo contrário, ele teve as suas contradições (cf. ARENDT, 1981) e até mesmo as suas reviravoltas. Os escritos de juventude, nos quais se fundamen­tou por exemplo MARCUSE (1973), para analisar as relações humanidade-natureza, sugerem um Marx bastante diferente daquele maduro, tematizado por exemplo por QUAINI (1979), que igualmente estudou nesse autor as relações sociedade-natureza. E quando se recorda da famosa (mas inacabada) obra Dialética da Natureza, de ENGELS (1974), companheiro inseparável do Marx e fundador com ele do materialismo histórico, fica evidente que tanto em Marx como no marxismo original (isto é, de Marx e Engels) não há uma leitura única e linear sobre a questão ambiental, mas, pelo contrá­rio, várias interpretações distintas.
O marxismo subseqüente veio ampliar ainda mais esse leque de interpretações do materialismo histórico sobre as relações da humanidade com o seu meio ambiente natural. Acreditamos, todavia, que se pode resumir essas interpretações variadas no interior do marxismo em três abordagens principais da na­tureza: a dialética da natureza, a história natural e social se entrelaçando, e a segunda natureza vista como predominante e absoluta na modernidade.
A rigor, essas três percepções de natureza não se excluem, mas surgiram em contextos distintos e apontam na realidade para conseqüências programáticas diferenciadas.
A dialética da natureza
Vamos examinar, sucintamente, a leitura da natureza como dialética, como forma de movimento. Essa leitura, a dialética da natureza, foi sistematizada por Engels embora seja também seja encontrável em Marx sob a forma de fragmentos, em notas de rodapé de O Capital, em inúmeras cartas enviadas para seu amigo Engels, a quem apoiou nos estudos de geologia, quí­mica, matemática, etc., e principalmente nas preocupações de estender a dialética para o domínio do natural. Mas o livro de Engels que tem esse nome na verdade é um rascunho que nunca foi publicado durante a vida do autor. A primeira edição dessa obra é de 1932, portanto trinta e sete anos depois da mor­te de Engels. Contudo, apesar da redação não definitiva, da falta de capítulos ou finais de capítulos, a obra não destoa do pensamento marxista, ao menos de algumas de suas variantes e, além do mais, nele são reproduzidas inúmeras idéias que Engels havia desenvolvido anteriormente no livro O Anti-Dühring, editado em  1878.
A idéia central dessa polêmica obra é a de haver uma dialética (que foi siste­matizada em "leis" gerais, retiradas em grande parte de Hegel, a partir de uma simplificação caricatural dos escritos sobre lógica desse filósofo) na natureza em geral, orgânica ou inorgânica, no universo como um todo afinal. A imagem de natureza que surge nessa obra é a de movimento como fundante (como "essência") do real: espaço e tempo, repouso ou calor, tudo isso seriam apenas formas do movimen­to. A dialética deixa de ser algo eminentemente social e histórico, uma lógica (e ao mesmo tempo uma ontologia) ligada à ou expressa pela luta de classes, à contradição social com suas determinações, tal como nas principais obras de Marx (e também de Engels), para ser reduzida a algumas "leis universais". Essas simplistas “leis universais” da dialética seriam:
-    a lei da passagem da quantidade à qualidade, e vice-versa;
-    a lei da interpenetração dos contrários;
-    a lei da negação da negação (ENGELS, 1974: 49-56).
Apesar do notável esforço intelectual do autor, que leu e reinterpretou quase que todas as mais importantes idéias ou teorias científicas da sua época, nessa obra aparecem flagrantes erros derivados de desinformações sobre pesquisas avançadas daquele momento e de leituras enviesadas (ou dirigidas para algo que se quer a priori) dos trabalhos clássicos. Por exemplo: as críticas gratuitas a Mendel e à nascente genética (considerados "charlatanices" – sic!), apenas porque se fundamentam não tanto na causalidade e sim na probabilidade. Ou ainda a crença intran­sigente nas noções de espaço e tempo absolutos (mesmo sendo entendidas como for­mas do movimento), sem nenhuma abertura para os escritos que antecipavam embrionariamente a relatividade e o sistema integrado espaço-tempo. Ou mesmo o idealismo, que consiste em desprezar o estudo da coisa em si para supervalorizar uma lógica abstrata e ideal à qual a realidade deve obrigatoriamente obedecer. (Há críticas de pes­quisas empíricas importantes na época com base no confronto com trechos de Hegel, Leibniz e até Descartes!)
Na verdade, acreditamos que o significado mais profundo dessa dialética da natureza esteja numa opção política do velho Engels, que a adotou após o fracasso da I Internacional e a morte de Marx. Essa opção política, praticamente uma nova leitura do capitalismo diferente dos escritos do jovem Engels e mesmo do Marx maduro, foi iniciada por Engels e conti­nuada por herdeiros como Kautsky. Trata-se da social-democracia, ou seja, a esperança na mudança "natural" do capitalismo (isto é, sem uma revolução violenta), que se transformaria de forma progressiva em socialismo sem o uso da violência, sem uma revolução nos moldes da francesa. Isso ocorreria pela política social do Estado e mesmo pela melhoria gradativa dos padrões de vida dos trabalhadores com o desenvolvimento do capitalismo, algo que o velho Engels, que vivia na Inglaterra, podia observar à sua volta. Seria algo como a “lei dialética” da passagem do quantitativo ao qualitativo, ou em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo conduziria no seu próprio movimento quantitativo a uma mudança de qualidade, à passagem de um modo de produção para outro. A dialética da natureza, assim, seria uma legitimaçãocom o uso (caricaturado) da dialética de Hegel – para uma opção política social-democrata.
No entanto, apesar de justificável como fundamentação "científi­ca", nos moldes do século XIX com a sua na ciência natural, para a política reformista social-democrata, essa dialética da natureza teve uma continuação lamentável e até fanática na época stalinista da União Soviética com o lissenkismo (cf. CERUTI, 1987). Se no velho Engels e discípulos a dialética da natureza alicerçava implicitamente um engaja­mento na luta parlamentar, inclusive com uma valorização da democracia representativa, no stalinismo, pelo contrário, essa doutrina servia tão-somente para ampliar a dominação totalitária até o campo da ciên­cia, das artes e da filosofia. Nas palavras de um estudioso desse assunto, temos que:
Com Stalim e em geral com o stalinismo surge sobre esta base a supers­tição da objetividade inquebrantável das leis históricas, as quais operam com independência da vontade dos homens e não se diferenciam em na­da das leis da natureza. Não é casual que a ideologia oficial soube conciliar durante longos anos este objetivismo acrítico com o subjetivismo mais tosco, como ocorreu no assim chamado culto da personalidade de Stalin: os dois lados são complementares." (SCHMIDT, 1976).
A natureza como história
Uma outra interpretação marxista sobre a natureza é aquela que podemos denominar historicista. Ela surgiu – ou pelo menos assumiu uma forma acabadacom a obra de Marx e Engels Idelogia Alemã, escrita em 1845. Essa obraassim como a Dialética da Natureza, de Engels – nunca foi publicada durante a vida dos autores, mas apenas nos anos 1930 na União Soviética stalinista. Existe nesse livro um trecho com uma famosa frase que sintetiza essa leitura da natureza: "Conhecemos apenas uma única ciên­cia, a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois as­pectos: história da natureza e história dos homens..." (MARX e ENGELS, 1980, vol. I: 18).
É interessante registrar que essa frase, juntamente com algumas outras, foi riscada pelos autores no manuscrito original. Eles pretenderam de início publicar esse trabalho, mas acabaram desistindo após algumas dificuldades em encontrar um editor e principalmente, segundo argumentaram posteriormente, porque essas idéias serviram somente como “amadurecimento intelectual”. Convém notar que essa leitura da natureza como histórica, história natural, é tributária do evolucionismo clássico. Como se sabe, Darwin foi um autor lido, relido e efusivamente elogiado por Marx, que até pretendeu lhe dedicar O Capital, com o argumento que ele, Marx, teria feito para o "reino do social" o mesmo trabalho intelectual – uma verdadeira “revolução” na concepção dos seres vivos, no caso de Darwin – que o famoso biólogo havia feito para o "reino natural".
Nessa leitura, a história da natureza precederia a história da humanidade, porém, uma vez que esta última houvesse atingido um elevado grau de de­senvolvimento tecnológico (o que ocorreu com o advento do capitalis­mo, da modernidade afinal) e agisse cada vez mais eficazmente no sentido de modificar a natureza, a história natural ficaria subordinada à história social, seria uma parte integrante desta. A grande preocupação dessa linha interpretativa não é evidentemente o estudo da natureza em si, mas basicamente a fundamentação do socialismo como continuação lógica do capitalismo, como "etapa" histórica posterior e mais avançada numa compreensão evolucionista. Um outro trecho clássico de Marx aclara melhor esse fato:
“O chamado desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isso em condições bem determinadas -concebe-os sempre sob um aspecto unilateral. A religião cristã pôde ajudar a compreender objetivamente as mitologias anteriores depois de ter feito, até certo grau, por assim dizer dynamei, a sua própria crítica. Igualmente, a economia burguesa conseguiu compreender as socie­dades feudais, antiga, oriental, quando começou a autocrítica da socieda­de burguesa(...) A anatomia do homem é a chave da anatomia do maca­co. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia da Antigüi­dade, etc.” (MARX, 1974).
As referências à natureza, como se percebe, são voltadas essencialmente não para a sua compreensão efetiva e sim para (pretensamente) aclarar o social, para fundamentar uma visão "etapista" ou evolucionista da sociedade na qual a história seria uma seqüência de modos de produção, de estágios que, a partir da análise crítica do capitalismo que evidenciasse as suas contradições, mostraria que existe uma lógica teleológica do inferior para o superior, do feudalismo para o capitalismo e deste para o socialismo. Assim, as “leis” da história produziriam as contradições do capitalismo quecomo a célebre evolução do macaco ao homem, tão polemizada no século XIX – conduziriam ao socialismo, uma etapa pós-capitalista nascida a partir do término da dominação burguesa. Entretanto, o aprofundamento da análise da natureza mesma não teve grandes prosseguimentos nessa linha interpretativa da "história natural", dentro do marxismo.
Trabalho e segunda natureza
Esta terceira leitura da natureza pelos clássicos do Marxismo, a natureza como recurso que o trabalho humano reelabora, foi a que predominou – e ainda predomina, nos restritos círculos marxistas que ainda existem nos dias de hoje. Na verdade, essa concepção que a natureza, o "reino natural",  essencialmente como segunda natureza, como matéria reelaborada pelo trabalho humano, foi a percepção mais desenvolvida – e mais rica – no interior da produção marxiana e marxista.
O conceito de trabalho é fundamental nessa li­nha interpretativa, nessa compreensão da natureza. Mas não é o tra­balho da natureza – dos ventos, das formigas, da energia afinal –, tal como na Dialética da Natureza, de Engels, que entendeu o conceito de trabalho de acordo com a ciência natural, especialmente a física. Pelo contrário, nesta outra leitura o trabalho seria uma atividade (a maisnobre”) específica do ser humano. Seria um trabalho basicamente social, essencialmente voltado para dominar a natureza numa acepção cartesiana. Seria uma atividade realizada a partir do esforço físico (auxiliado pela tecnologia) norteado pela razão, pela inteligência humana. "O que dis­tingue a melhor abelha do pior arquiteto", assinalou Marx, que este último planeja o que vai fazer antes de realizar a obra". A racionalida­de, assim, passa a ser condição sine qua non para o trabalho, para a própria condição humana. Racionalidade tida como exclusivamente humana, sendo que a natureza é vista comocoisa”, como o reino dos objetos inanimados ou orgânicos sem racionalidade.
Assim, o trabalho é visto não apenas fora da natureza, mas em oposição a ela: é a produção humana que se destina, em última instância, a humanizar o mundo, a natureza, a criar portanto uma segunda nature­za – uma natureza artificial, subsumida à praxis inter-humana – no lugar da primeira na­tureza ou natureza original.
O socialismo como utopia seria não apenas uma sociedade igualitária, mas igualmente um espaço totalmen­te humanizado, onde uma segunda natureza construída sob planos e métodos científicos teria substituído a natureza selvagem ou caótica do passado. O trabalho, dessa forma, passa a ter um papel histórico teleológico e redentor: é por intermédio dele que os homens construi­rão a utopia, o socialismo[1], momento em que o trabalho acumulado (isto é, o desenvolvimento das forças produtivas) permitirá o reino da abundân­cia e não mais existirão aqueles que vivem da exploração do trabalho alheio.
Exis­te uma detalhada explicação das características e das etapas do processo do trabalho: desde a idéia de trabalho abstrato e socialmente necessário, que fundamente a noção de exploração da força de traba­lho por intermédio da mais-valia, até os objetos de trabalho (natureza ou terra) e os meios ou instrumentos de trabalho (tecnologia), donde emergiria um "ardil do trabalho" pelo fato de a racionalidade humana compreender as "leis" dos objetos de trabalho e, por intermédio da técnica, "dominar por dentro" esses objetos que nesse processo se­riam reproduzidos pelo trabalho humano (cf. DUARTE, 1986: 61-68).
Esta leitura marxista da produção de uma segunda natureza forneceu subsídios valiosos para se interligar a economia de mercado com a degradação ambiental. Entretanto, ela também engendrou equívocos na interpretação das reivindicações e dos movimentos ambientalistas ou ecológicos. Veremos isso a seguir.
O marxismo e as lutas ambientais
Como afirmamos, a leitura marxista da segunda natureza foi a mais importante no interior dessa corrente de pensamento. Ela ajudou na crítica aos impactos ambientais gerados pelo capitalismo, embora tenha sido conivente com os desastres ambientais do socialismo real. Em todo o caso, nãodúvida que a perspicácia crítica de Marx detectou importantes as­pectos das relações homem-natureza no capitalismo. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de O Capital, tão arguto e conservacionista avant la lettre:
“Do ponto de vista de uma formação econômica superior, a propriedade privada da terra, por parte de alguns indivíduos, parecerá tão absurda como a propriedade privada de um homem por parte de outro homem. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação e mesmo todas as sociedades de uma mesma época, tomadas em conjunto, não são proprietárias da terra. São somente seus possessores, seus usufrutuários, e têm o dever de deixá-la melhorada, como boni patri famílias, às gerações sucessivas.” (Marx apud QUAINI, 1979).
O único problema é que essa notável consciência de a natureza não ter dono legítimo (nem mesmo uma nação inteira, o que deveria servir para muitos marxistas nacionalistas – uma categoria indubitavelmente absurda para o internacionalista Marx, mas que predomina no Brasil e na América Latina em geral – repensarem suas posições "anti-ingerência externa" sobre a Amazônia) é acompanhada por uma inquebrantável na ciência e no seu poderio sobre o mundo material. Marx nunca foi um crítico da ciência e tampouco da tecnologia – e, mais do que isso, sempre foi fiel à sua crença no “progresso”, no desenvolvimento das forças produtivas não importa a que preço ambiental.
ainda outros trechos importantes nesse clássico:
“O capitalismo, em sua expansão, revoluciona a agricultura, destruindo o baluarte da velha sociedade, o camponês, substituindo-o pelo trabalhador assalariado. As necessidades de transformação social e a oposição de classes no campo são assim equiparadas às da cidade. Os métodos ro­tineiros e irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação cons­ciente, tecnológica, da ciência(...) Com a preponderância cada vez maior da população urbana que se amontoa nos grandes centros, a produção capitalista por um lado concentra a força motriz da sociedade e, de outro lado, perturba o intercâmbio material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano.” (MARX, 1974).
É uma crítica da urbanização e das radicais mudanças no meio rural. O problema é que essa crítica se dirige não aos aspectos ambientais em si, mas basicamente às injustiças sociais, às desigualdades entre as classes. O socialismo de acordo com Marx, é importante ressaltar, não vai desurbanizar a humanidade e muito menos produzir um retorno a essa “velha sociedadeonde existia o camponês. O capitalismo é visto como uma condição necessária, como produtor de mudanças irreversíveis, mudanças essas quecom exceção das desigualdades sociais – constituem o progresso, o desenvolvimento das forças produtivas imprescindível para o advento da etapa histórica seguinte (o socialismo).
A artificialidade das necessidades, que passam a serem fabricadas em grande es­cala pelo capitalismo, também foi uma outra constatação desse teórico:
Por outro lado a produção de mais-valia relativa baseada sobre o au­mento e desenvolvimento das forças produtivas, exige a produção de no­vos consumos; isto é, exige que o círculo do consumo no âmbito da cir­culação se alargue do mesmo modo que antes se alargava o círculo da produção. Em primeiro lugar: uma ampliação quantitativa do consumo existente; em segundo lugar: a criação de novas necessidades mediante a propagação das existentes numa esfera mais alargada; em terceiro lugar: a produção de necessidades novas e a descoberta e a criação de novos valores de uso(...). Disto advém a exploração sistemática da natu­reza para descobrir novas propriedades úteis nas coisas; a troca univer­sal dos produtos de todos os climas e de todos os países; a nova (artifi­cial) preparação dos objetos naturais, mediante a qual lhe são conferidos novos valores de uso; a exploração completa da terra para descobrir tanto objetos úteis novos, quanto novas propriedades úteis dos velhos, ou então suas propriedades como matérias-primas, etc." (Marx apud QUAINI, 1979).
Dessa forma, o capitalismo é questionado tanto por explorar o proletariado como também, e de forma interligada, por rapinar a natureza, a terra, por gerar necessidades artificiais e exigir intensa exploração irracional dos recursos. Mas o fundamental realmente é a relação homem-homem, a exploração social consubstanciada através da mais-valia (rela­tiva e absoluta). E a essência dessa exploração estaria na apropriação social capitalista dos meios de produção, na propriedade privada em suma. Engels, a esse respeito, não deixou dúvidas:
“A solução da questão da habitação não traz consigo a solução da ques­tão social, mas, ao contrário, somente a solução da questão social, isto é, a abolição do modo de produção capitalista tornará ao mesmo tempo possível a solução da questão da moradia.” (Engels apud QUAINI, 1979).
Essa argumentação reducionista foi – e às vezes ainda é, embora com muito menos freqüência – reproduzida ad nauseam pelos marxis­tas-leninistas em relação às reivindicações feministas, dos afro-descendentes, dos ecologistas e inúmeras outras. Seriam todas “contradições não essenciais”. O fundamental seria combater o capitalismo, a apropriação privada dos meios de produção – a chamada "contradição principal" da nossa sociedade –, sendo que os "demais problemas" – isto é, essas "contradições secundárias" – seriam resolvidos após a instauração do modo de produção socialista. Seriam na verdade pseudo-problemas, ou epifenômenos, às vezes até chamados de “pequeno-burgueses”, que automaticamente a sociedade sem classes solucionaria. Veja-se este lapidar exemplo:
Antes de mais nada fica claro que as contradições ecológicas e territo­riais devem ser conduzidas aos mais profundos antagonismos do modo de produção capitalista e que para elas não pode haver superação real a não ser como superação das relações de produção e portanto de toda a organização social e territorial do capitalismo.” (QUAINI, 1979).
Ou ainda este outro trecho de um geógrafo marxista, na verdade modelar pelo seu dogmatismo:
“A resposta de Marx às concepções ecológicas(...) era muito clara an­tes que elas surgissem: para a superação das contradições do capitalis­mo é necessário que o pleno desenvolvimento das forças produtivas te­nha se tomado uma condição da produção, e não que determinadas condições de produção sejam colocadas como limites do desenvolvimento das forças produtivas.” (Idem: 136, grifos nossos)
A no progresso, no "desenvolvimento das forças produtivas", é basilar nesse marxismo ortodoxo. O grande problema residiria na apropriação privada, na irracionalidade burguesa. A racionalidade científica, no entanto, carregada pelo socialismo, viria prosseguir com esse progresso, construindo uma segunda natureza sem esse "desequilíbrio" capitalista que se deve à exploração social e à ausência de um verdadeiro planejamento. Um pensamento desse tipo, como se percebe, é incapaz de analisar e criticar os problemas da economia planificada, tampouco os desastres ambientais gerados pelo socialismo real. Seria isso talvez um prosseguimento temporão do iluminismo? O fato é que essa posição que não reconhece limites no desenvolvimento econômico, na tecnologia, no domínio da humanidade sobre a natureza, é freqüente e – pelo menos foi, atéalguns anosinclusive hegemônica no marxismo.
Um outro autor, igualmente geógrafo e dentro dessa mesma interpretação ortodoxa, alicerçada no marxismo-leninismo, nuançou um pouco a questão, mas concluiu de forma cartesiana que:
“Ao invés de dominação da natureza, devemos, portanto, considerar o processo muito mais complexo de produção da natureza. Enquanto o ar­gumento da dominação da natureza sugere um futuro sombrio, unidimen­sional e livre de contradições, a idéia de produção da natureza sugere um futuro histórico que ainda está para ser determinado(...) Através do tra­balho humano e da produção da natureza na escala global, a sociedade humana colocou-se no centro da natureza. Desejar coisa diferente é nostálgico. Precisamente esta centralidade da natureza é o que impulsio­na a louca busca do capital, realmente para controlar a natureza, mas a idéia de controle sobre a natureza é um sonho(...) Verdadeiramente hu­mano, o controle social sobre a produção da natureza, contudo, é o so­nho realizável do socialismo.” (SMITH, 1988, grifos nossos).
O que surpreende nesses autores, e vários outros semelhantes, é a to­tal ausência de referência ao socialismo real, ou seja, aos enormes proble­mas de poluição e degradação ambiental nesses países de economia planificada que em tese seguem os ensinamentos de Marx. Sem essa explicitação, suas referências ao socialismo (que socialismo? e que economia diferente da de mercado?) como redentor das rela­ções homem-natureza ficam vagas, ambíguas (de forma proposital?), não se sabendo exatamente o que significa "superar" o modo de pro­dução capitalista e porque essa mesma ciência e tecnologia capitalis­tas, ao serem operacionalizadas no "modo de produção socialista", irão gerar efeitos opostos do ponto de vista ambiental. Em suma, por que a “produção da natureza” – noção que nos parece problemática – é negativa no capitalismo, na economia de mercado, e ao mesmo tempo positiva no socialismo, na economia planificada? Será apenas porque nessa sociedade-outra os técnicos e cientistas “qualificados” (isto é, os autores dessas barbaridades) supostamente estarão no poder e também supostamente poderão exercitar à vontade, sem as imposições dos políticos com poder de decisão ou dos donos dos meios de produção, as suas receitas para o planejamento? Conhecemos essa história: a experiência dos diversos totalitarismos do século XX nos mostrou de forma cabal que tipo execrável de sociedade é essa, na qual alguns “iluminados”, detentores de um sabersuperior” (o marxismo), mandam e desmandam à vontade.
Ecologismo e Crise do Marxismo
Malgrado os reproches marxistas tradicionais quanto à natureza "pequeno-burguesa" dos movimentos ecológicos[2], baseados na origem social dos teóricos e representantes ecologistas (como se os principais teóricos ou militantes de partidos marxistas-leninistas também não fossem de origem pequeno-burguesa, mesmo dizendo representar o proletariado!), o fato é que o ecologismo cresceu enormemente no ras­tro da crise do marxismo. Inclusive uma das razões dessa crise, des­sa verdadeira perda de fôlego do marxismo, foi a "consciência ecológi­ca" cada vez mais aguda e as visíveis insuficiências dessa doutrina social em minimamente dar conta dessa problemática. Evidentemente que ao lado de outros moti­vos: refluxo do movimento operário, desilusões de grande parte da esquerda com o socialismo real, enorme burocratização dos partidos socialistas e comunistas, e também dos sindicatos em geral – às vezes até de movimentos sociais –, advento de outros sujeitos e formas de luta – o feminismo, as demandas étnicas e homossexuais, o ecologismo –, as dificuldades em definir quem é ou não prole­tário, algo que aumentou enormemente com a revolução técnico-científica, etc.
O marxismo, contudo, transformou-se enormemente no transcorrer do século XX e em especial nas últimas décadas. Pouco a pouco ele deixou de ser uma tentativa ousada de pensar o capitalismo e o futuro do social, como expressão do movimento operário, para se tornar quase que tão somente um discurso ideológico da burocracia que ou está no poder (num Estado ou em micropoderes como escolas, asilos, partidos, aparelhos estatais isolados, etc.) ou almeja a tal (cf. CASTORIADIS, 1982.). E assim como as grandes corporações capitalistas em grande parte incorporaram o discurso ecologista (e até lucram com ele!), também o marxismo burocratizado poderá lograr tal fato. Mas a grande questão é se isso basta, se o imperativo dos limites do atual sistema produtivo e tecnológico, extremamente militarizado e degradador do meio ambiente, não irá demonstrar historicamente que desenvolvimen­to do capitalismo (burocratizado ou não) e preservação ambiental são elementos que se contradizem, como argumentam os ecologistas mais radicais.

BIBLIOGRAFIA CITADA

ARENDT, H. A condição humana. São Paulo, Forente/Edusp, 1981.
BENJAMIM, W. Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo, Brasiliense, 1984.


* Palestra proferida em 1986 durante uma Semana de Geografia em Rio Claro (SP). Também texto de uma aula do curso Conservação dos Recursos Naturais, que lecionamos na USP de 1986 até 1988. Uma versão modificada deste texto foi publicada como um capítulo do livro Geografia, Natureza e Sociedade (editora Contexto, 1989, pp. 41-50).
[1] Inúmeros autores demonstraram as origens religiosas (via Hegel, um ardoroso cristão) desse projeto destina­do a redimir a humanidade por intermédio de um "messias" (o proletariado) e de um ins­trumento básico (o trabalho, que desempenha nessa doutrina um papel semelhante ao da vida sem pecados no cristianismo; ou seja, é a atividade humana nobre por excelência, que levará no final das contas ao "paraíso" do futuro). Cf., entre outros, GORZ, 1982, e KOLAKOWSKI, 1985.

[2] Veja-se como exemplo dessa atitude o texto de TRAGTEMBERG, 1974.

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