Jesus o Bom Pastor

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09 setembro 2010

Resenha crítica do livro As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano (editora Paz e Terra, 1994, 36ª edição).


José William Vesentini (*)

Publicado inicialmente em 1971, em espanhol, e tendo obtido um sucesso imediato (e tradução para inúmeros idiomas, inclusive o português), este livro do escritor uruguaio Galeano pretende, ao menos na aparência, fazer uma história da América Latina com ênfase na sua constante “exploração” pelas potências imperialistas. Digo na aparência porque de fato não se trata de uma história: não existe qualquer seriedade acadêmica ou científica, qualquer preocupação com as fontes, sua checagem e o confronto com outras sobre o mesmo tópico, nem mesmo qualquer preocupação em dialogar (seja reproduzindo, adaptando, criticando ou modificando) com as idéias dos clássicos que teorizaram a respeito da exploração dos trabalhadores (Marx) ou das “nações oprimidas” (Lênin), e sequer a de ter uma interlocução a sério (sem meramente citar uma ou outra frase descontextualizada) com a ampla e boa bibliografia sobre a história da América Latina que já existia antes da redação desta obra, tais como os trabalhos de Manoel Bomfim, Celso Furtado, Raul Plebish ou Tulio H. Donghi, para mencionar apenas alguns exemplos. É um livro mais de ficção, embora com frequência mencione – quase sempre numa leitura enviesada – determinados episódios verídicos e sempre escolhidos a dedo para comprovar a idéia central do livro. Mas é uma boa ficção jornalística, bem escrita e de leitura agradável, acessível ao público letrado em geral (até mesmo a alunos do ensino básico, daí advindo boa parte da sua enorme popularidade, pois pode ser usada como leitura complementar nas disciplinas história e geografia quando se aborda a América Latina) e no fundo contendo humor ou episódios engraçados (ou melhor, que o Autor torna engraçados pela sua experiência anterior como chargista e jornalista).

A idéia central do livro surge logo nas primeiras linhas: 

Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. (...) Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. (...) É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano (...) Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra.  (Galeano, pp. 5-6, grifos nossos).

Essa longa citação foi necessária porque resume todo o conteúdo, toda a argumentação do livro. O restante da obra é constituído tão somente por exemplificações variadas dessa idéia central, qual seja, que a América Latina desde que foi ocupada [seria mais apropriado dizer construída, mas esta percepção é complexa demais para o raciocínio simplista de Galeano] pelos europeus no século XVI, sempre foi e continua sendo uma “vítima” da “exploração internacional”, da potência capitalista dominante neste ou naquele momento da história. Mais ainda: como uma reprodução mimética, devido às “elites” internas [nossa classe dominante e ao mesmo tempo dirigente] em conluio com os interesses externos, existiria também aqui uma exploração das regiões mais pobres e baseadas em atividades primárias pelas mais ricas e industrializadas ou que têm por base atividades mercantis. Ou que até mesmo haveria, como o texto afirma explicitamente, uma exploração dos Estados-nações menores pelos maiores [o Autor pensa aqui na “exploração” da Bolívia ou do Paraguai pelo Brasil ou pela Argentina].

Sem dúvida que o leitor minimamente informado e culto logo deve ter percebido que se trata de uma simplificação grotesca e mecanicista de algumas idéias de Caio Prado Júnior, Andé Gunder Frank, Rodolfo Stavenhagen e alguns outros pensadores clássicos desta região do globo, que escreveram sobre o “sentido da colonização” [mas sem a menor pretensão que isso fosse algo inexorável e válido até o presente], sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” [isto é, que o desenvolvimento dos países ou regiões ricas se faz, necessariamente, às custas da crescente pobreza nos países ou regiões pobres, um argumento inicialmente de Gunder Frank que ele próprio, após algum tempo, considerou superado ou inadequado] ou sobre o “colonialismo interno” [uma antiga tese, típica dos anos 1960, de Stavenhagen e Pablo G. Casanova, ambos do México, segundo a qual existiriam regiões exploradoras e exploradas dentro dos países subdesenvolvidos]. A partir dessa idéia central, no fundo uma caricatura de algumas obras de pensadores críticos dos anos 1950 ou 60 (os quais, cabe realçar, em muitos casos reviram posteriormente suas teses em confronto com uma nova bibliografia e principalmente com as mudanças na realidade) , Galeano prossegue nas duzentas e tantas páginas do seu livro com ilustrações ou exemplificações que comprovariam essa tese: citações descontextualizadas deste ou daquele autor, deste ou daquele político ou empresário, longas descrições de certos acontecimentos que, dependendo de como são contados, podem ser encaixados no seu ponto de vista, etc. Em suma, essa idéia central é reproduzida ad nauseam no restante do livro de mil maneiras, através de pretensos exemplos históricos, de trechos da fala de políticos ou empresários até mesmo norte-americanos (dando a impressão que eles admitem estarem “explorando” a América Latina), de relatos de massacres perpetrados contra grupos indígenas ou contra toda a população paraguaia (numa reprodução do famoso mito que o Paraguai de Solano López era uma democracia cuja economia crescia enormemente a cada ano de forma independente das potências imperialistas e que estas incentivaram o Brasil, junto com a Argentina e o Uruguai, a arrasar essa “experiência de desenvolvimento autônomo”, exterminando de propósito a maior parte da população daquele país). Um amontoado de idiotices mesmo que alguns episódios propalados no livro tenham de fato ocorrido (tal como o extermínio de inúmeros grupos indígenas), embora sempre vistos de forma desvirtuada pela leitura de Galeano.

Essa interpretação maniqueísta da guerra do Paraguai, por exemplo, é totalmente simplória e até mesmo rasteira. Na verdade, segundo uma historiografia mais recente e crítica, essa guerra teve motivos bem diferentes. O militar e ditador López, por exemplo, foi nomeado presidente vitalício do Paraguai pelo seu pai, também presidente vitalício antes dele. Era um aliado declarado da França de Napoleão III [também uma potência imperialista, que inclusive tentou recolonizar o México impondo ao país um imperador títere, Maximiliano da Áustria], a quem tinha como modelo, que inclusive lhe forneceu armas para a guerra. E na verdade foi ele quem iniciou o conflito – pois antes dos embates tinha um exército mais numeroso e bem armado do que aqueles três países juntos – com vistas a anexar em seu território partes do sul do Brasil e do nordeste da Argentina. Uma boa parte da população paraguaia morreu no conflito? Infelizmente sim, embora o seu número exato seja polêmico e sem dúvida sensivelmente inferior ao anunciado por uma certa bibliografia jornalística e panfletária (no estilo de Júlio J. Chiavenato), cujas exageradas cifras (chegando até a 97% de toda a população masculina do país!) Galeano menciona. Pelo menos em parte, essa alta mortandade foi uma decorrência da obrigatoriedade, imposta por López, de crianças e adolescentes do sexo masculino servirem às forças armadas por ocasião da guerra, sendo que os que se recusavam ou que recuavam quando estavam perdendo alguma batalha eram sumariamente fuzilados pelos próprios soldados paraguaios a mando do ditador (1). Um conceituado historiador que reviu as causas dessa guerra assinalou que ela não foi instigada pela Inglaterra, como alguns (que Galeano repetiu, como sempre de forma caricatural) argumentaram, mas sim por contradições internas dos Estados sul-americanos envolvidos. Teria sido, na interpretação desse historiador (2), uma guerra na qual não existiram “bandidos” nem “mocinhos” e cuja razão última foi a consolidação dos Estados nacionais na região platina, além de Solano López ter tido a pretensão de obter pela força das armas uma saída para o mar. Mas a idealização de López por Galeano chega ao ponto de ele, na pg. 134, censurar o poeta chileno Pablo Neruda, que escreveu o Canto General, uma homenagem aos povos latino-americanos, por não ter destacado Solano López como um dos eternos heróis desta região do globo!

 Afinal de contas, essa tese simplista que constitui a essência do livro de Galeno tem como alicerce a seguinte lógica: que um país ou uma região desenvolvida (industrializada, com tecnologia moderna, com elevado padrão ou qualidade de vida, com boas escolas e universidades, com um bom e acessível sistema de saúde, etc.) sempre conseguiu esse feito graças não à produção interna, ao sobretrabalho como diria Marx, e sim à exploração de outros países ou regiões, que por esse motivo são cada vez mais pobres e miseráveis. É a teoria da soma zero, de que numa transação ou numa interação qualquer sempre que alguém ganha ou obtém algum benefício é porque um outro perdeu (ou vice-versa). Em outras palavras, é a imagem de um hipotético bolo – toda a riqueza mundial ou global – que teria sempre um tamanho único e fixo e, dessa forma, se alguém está comendo um pedaço grande é porque os outros vão ter que sobreviver com migalhas. Galeano leva essa imagem equivocada aos extremos, afirmando que toda a história recente (do século XX) comprova que “as desigualdades internacionais crescem a cada ano” (p. 8), como também as regionais dentro dos países latino-americanos, ou seja, que os países (ou regiões) pobres ficam a cada ano mais pobres enquanto que os desenvolvidos ficam cada vez mais ricos. Está aqui, juntamente com a clareza do texto e a pretensão de ser uma história de fato (isto é, um estudo objetivo e racional mesmo que não neutro), a explicação para a o enorme sucesso deste livro em especial entre certa parcela da intelectualidade latino-americana (e também, secundariamente, entre um ou outro “esquerdista” mais panfletário da Europa ou dos Estados Unidos). Afinal, ele consola aqueles que se sentem subjugados ou inferiorizados, ele lhes explica que no fundo eles são “vítimas” e a culpa é sempre dos “outros”, daqueles que estão numa situação melhor. Tanto Freud como Nietzsche já haviam teorizado a respeito dessa “transferência da culpa”, oriunda de “ressentimento” e de um “sentimento de inferioridade”. Galeano também fornece um caminho, ou melhor, uma fuga, que no fundo é comodista: a revolta pura e simples, a militância numa organização ou num partido “anti-imperialista”, como se o simples rompimento com os “outros”, com o capitalismo e com as “potências dominantes”, fosse a garantia para um futuro melhor. Em suma, o futuro nacional desejável, o desenvolvimento econômico e principalmente social não virá do esforço (educação e estudos, investimento em tecnologia, qualificação da força de trabalho), mas sim de uma simples atitude de rebeldia (que os adolescentes tanto adoram!), de um rompimento com os Estados Unidos e com o capitalismo, tal como teria ocorrido em Cuba, que é idealizada neste livro como o grande farol para a América Latina.

É fácil perceber porque esta obra fez tanto sucesso nos anos 1970. Foi a principal década das ditaduras militares no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai e em alguns outros países da região. Ditaduras muitas vezes sangrentas, que contavam com o apoio no mínimo tácito dos Estados Unidos em função da guerra fria e do fato de elas supostamente estarem “combatendo o avanço do comunismo”. Ditaduras que reprimiam qualquer forma de pensamento crítico e propalavam um maniqueísmo que no fundo ajudou a promover idéias como esta de Galeano, também maniqueístas mas com o sinal invertido. Era de fato uma época de maniqueísmos, em grande parte suscitados pela realidade da guerra fria e a pretensa oposição dual e radical entre o capitalismo norte-americano versus o comunismo soviético.  Confesso que nessa década cheguei a usar trechos deste livro de Galeano nas minhas aulas de geografia no ensino básico. Como boa parte dos jovens universitários na época, era um fiel simpatizante do governo Allende no Chile (quase tive um ataque cardíaco quando ouvi no rádio sobre o golpe militar de 1973!) e também um simpatizante (embora não tão fiel assim: já tinha as minhas dúvidas) do regime castrista em Cuba. Mas o mundo mudou, o clima intelectual também, novas e arejadas idéias e informações acabaram por se impor. E outras ainda surgirão no futuro, embora de maneira alguma, como apregoam alguns, a mera repetição do passado, das crenças infantis dos anos 1970. Afinal, as pessoas evoluem e todos, em algum (ou alguns) momento da vida, cometem sérios equívocos. O trabalho do intelectual é se manter atualizado, pesquisar, ser honesto e crescer intelectualmente, sem nunca fincar o pé numa posição apriorística e doutrinária, a qual em última instância é uma atitude intransigente e até mesmo comodista. Se é fácil entender o porque do enorme sucesso deste livro nos anos 1970, em contrapartida é difícil compreender a razão pela qual isso perdura até hoje, quando toda a história dos anos 1980 em diante mostrou a sua natureza errônea.

Sem dúvida que idéia central de Galeano tornou-se insustentável frente às evidências empíricas: a diminuição – e não o aumento – das desigualdades internacionais de uma forma geral (salvo exceções) nas últimas décadas, algo facilmente detectável pela análise de qualquer série anual de dados estatísticos confiáveis sobre PIB, renda per capita, expectativa de vida ou principalmente o IDH dos diversos países do mundo (3). Isso sem falar no inegável fracasso do “modelo cubano”, por um lado, e pelo outro o retumbante sucesso de países que se desenvolveram não cortando os laços e sim se integrando mais no mercado mundial – o Japão, em primeiro lugar, depois os “tigres asiáticos” e mais recentemente a China e a Índia. Por sinal, todos os países que conheceram uma real melhoria no padrão de vida de suas populações nas últimas décadas foram economias que se integraram cada vez mais no mercado mundial, em outras palavras no capitalismo global, inclusive abrindo as portas para os investimentos estrangeiros e incrementando (e não diminuindo) suas relações comerciais com “as potências capitalistas”, notadamente com os Estados Unidos. Mas Galeano realmente não se importa com as evidência empíricas, ele apenas seleciona cuidadosamente citações que aparentemente comprovam a sua idéia básica.

Há uma visível escassez e insatisfação generalizadas em Cuba? Galeano não consegue ignorar esse contratempo e acaba “explicando” isso com a afirmação de que é exatamente porque no socialismo todos podem consumir de tudo que faltam produtos! É lógico que ele também culpa o “bloqueio” norte-americano a Cuba como a principal causa dos problemas na ilha (Galeano, pp.51-5). Isso não poderia faltar no seu livro. Mas não deixa de ser curioso o fato de que há uma enorme contradição nessa desculpa. Ou seja, quando os Estados Unidos estabelecem relações comerciais e financeiras com um país o estão “explorando”, mas quando eles cortam essas relações, deixando de investir capitais ou de comprar açúcar, como ocorreu com Cuba, isso passa a ser um “bloqueio” e a principal razão dos problemas dessa nação! Não é uma incoerência? A bem da verdade, esse famoso “bloqueio” [ou melhor, embargo] nada mais é que uma legislação norte-americana de 1962 que proíbe às firmas daquele país, e apenas a elas como é óbvio [já que nenhuma legislação nacional em todo o mundo poderia dizer o que as firmas de outros países podem ou não fazer nas suas relações com terceiros], de terem relações com Cuba ou de investirem capitais na ilha. (Por sinal, isso é algo que há tempos, desde pelo menos os anos 1980, vem sendo driblado pela formação de joint ventures nas quais capitais norte-americanos se associam a grupos de outros países para estabelecerem negócios em Cuba ou construírem por lá hotéis cinco estrelas, em algumas das melhores praias do país que, com o consentimento do governo de Fidel Castro, se tornam particulares e interditadas aos cubanos comuns; oficialmente, a origem do capital não é norte-americana). Em outras palavras, não é e nunca foi um bloqueio tal como o pretendido em 1806 por Napoleão Bonaparte, por exemplo, isto é, obstar os navios de circular num trecho do oceano ou de descarregar em tais ou quais portos. Isso quer dizer que nunca houve qualquer impedimento – nem poderia haver, pois isso seria uma delaração de guerra a todos os demais Estados – para o comércio de Cuba com o restante do mundo. Não apenas com o “bloco soviético”, que durante algum tempo sustentou o país, mas até mesmo com o Canadá, Espanha, França, México, e alguns poucos outros países capitalistas ou com economias de mercado, que nunca deixaram de manter relações comerciais com Cuba mesmo no auge da guerra fria, nos anos 1960 ou 70. Esse comércio não era e ainda não é muito intenso devido não a uma pretensa imposição desse “bloqueio”, mas sim pela fraqueza da economia cubana, que pouco tinha e ainda tem a oferecer (basicamente açúcar, charutos e rum), além de sua escassez em divisas para adquirir produtos desses países.

A popularidade do livro de Galeano, mesmo não sendo mais tão intensa como nos anos 1970, ainda se mantém devido ao crescimento dos regimes autoritários e populistas na América Latina, que em muitos casos fazem uso de uma retórica anti-imperialista para se legitimarem e/ou se perpetuarem no poder. O ditador venezuelano Hugo Chávez, por exemplo, ajudou a promover o livro em janeiro de 2009, ao dar um exemplar de As veias abertas da América Latina como presente ao recém empossado presidente norte-americano Barak Obama. [Por sinal, foi por esse motivo que escrevi estes comentários críticos: vários jornalistas, ex-alunos e professores de geografia me mandaram e-mails solicitando meu parecer sobre o livro. Sem isso não teria sequer relido esta obra que já considerava ultrapassada e até retrógrada.]. Situação paradoxal, pois este livro logrou um enorme sucesso em oposição às ditaduras dos anos 1970 e agora ele volta a adquirir uma renovada popularidade devido às novas ditaduras, que em alguns casos (como principalmente na Venezuela) são até mais repressivas que as que existiram naquela década! Galeano deveria abençoar as ditaduras por, de forma direta ou indireta, alçar o seu livro à categoria de best-seller, por sinal um dos maiores da América Latina durante várias décadas.  Mas na verdade Chávez tem razão ao promover Galeano: este livro com a sua retórica pseudoradical infantil e panfletária (que até Chávez consegue entender!) lhe forneceu subsídios para implantar uma ditadura que se apresenta como revolucionária, como uma oposição intransigente ao imperialismo norte-americano visto como o grande culpado pelos males da América Latina. O livro de Galeano – embora não só ele, pois é parte de um enorme conjunto de obras, panfletos, discursos e escritos jornalísticos pretensamente esquerdistas [alguns até propagados por políticos corruptos que hoje compõem a elite econômica (digamos, os 0,01% mais ricos) da região, por pelegos de sindicatos ou por oligarcas de regiões atrasadas que veem nestas idéias uma forma de desviar a atenção do seu mandonismo, além de outros semelhantes] –, mesmo sem talvez o pretender, contribui para manter o atraso na América Latina. Não é um livro que soma, que incita à melhoria (aos estudos, pesquisas, empreendedorismo – por sinal, algo repudiado como demoníaco no livro –, maior incentivo à produção e à geração de tecnologica, e por aí afora, fatores que indubitavelmente foram e são essenciais no arranque de países como China, Coréia do Sul, Cingapura e outros, que até os anos 1970 eram mais atrasados economica e socialmente que o México, a Venezuela, o Brasil ou a Argentina), mas, pelo contrário, é uma obra que gera ressentimentos, que transmite uma mensagem segundo a qual a “solução” para todos os problemas sociais, econômicos, culturais ou espaciais está na luta, na ferrenha oposição ao capitalismo e aos Estados Unidos. Uma ilusão. Mas uma ilusão perigosa, que mais atrapalha do que ajuda na busca de alternativas para o futuro por parte das nações latino-americanas.



(São Paulo, fevereiro de 2009)

NOTAS:
(*) Professor Livre Docente no Depto. de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo.

(1) Cf. CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo, Cia das Letras, 2007, pp. 106-125. O Autor menciona depoimentos de prisioneiros paraguaios durante a guerra, quando num gesto magnânimo (e também, provavelmente, com vistas a mostrar disposição para o diálogo e o término do conflito) D. Pedro II mandou soltar, que suplicaram para continuarem prisioneiros até o final da guerra, pois com certeza seriam fuzilados por ordem do energúmeno ditador, que não admitia que algum militar paraguaio fosse aprisionado sem resistir até a morte.
(2) Cf. DORATIOTO, F. Maldita guerra. São Paulo, Cia das Letras, 2002, pp. 95-6.

(3) Sobre esse assunto ver nossa análise in VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global, Campinas, Papirus, 2003, especialmente pp. 107-134.

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