Jesus o Bom Pastor

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09 setembro 2010





Geografia humana progressista

A palavra progresso curiosamente ressoa como algo moderno, conotando todos os desacreditados projetos do iluminismo. Mas apesar da minha simpatia pelo pós-modernismo, apesar de todas as reservas que mantenho ao modernismo, não posso, enquanto cidadão e acadêmico, deixar de lado a idéia de um projeto emancipatório. Mas podemos distinguir entre vários tipos de progresso. Publicar livros ou artigos, por exemplo, podem ajudar no progresso individual dentro da hierarquia universitária. Progresso nesse caso seria um ganho individual. Esse seria o progresso dos geógrafos(...) Há também o progresso da geografia, que seria a habilidade de manter ou ampliar a posição da disciplina no sistema educacional. E há ainda o progresso na geografia, freqüentemente definido como a habilidade dos geógrafos em produzir uma maior compreensão sobre o mundo(...) Progresso na geografia humana, eu gostaria de sugerir, não é isento de implicações sociais ou de conseqüências políticas. A busca do conhecimento, inclusive o que significa conhecimento, é um ato político. Não existe uma pesquisa livre de valores ou politicamente neutra. No nosso papel de professores ou pesquisadores, nós estamos social e politicamente implicados. Implicados, mas não necessariamente comprometidos. Um elemento importante na história da geografia tem sido a questão do engajamento com o mundo externo. No seu ensaio "A função da universidade no tempo de crise", Noam Chomsky apontou alguns problemas:

"Normalmente considera-se que a universidade presta serviços à sociedade,
ou que a sua atividade deva ser "relevante" para os problemas sociais.
Essa idéia é justificável. Todavia, quando colocada na prática
isso usualmente significa que a universidade presta serviços
às instituições sociais existentes, que estão na posição de articular
suas necessidades e subsidiar os esforços para equacioná-las(...) O
Pentágono e as grandes corporações podem formular suas necessidades
e subsidiar a maneira pela qual elas podem ser equacionadas.
Mas os camponeses na Guatemala ou os desempregados no Harlem
não estão em posição de fazer o mesmo." (Chomsky, 1973)

Essas considerações de Chomsky são muito pertinente neste momento em que os geógrafos parecem encantados pela noção de know-how técnico, em particular pelo GIS (geographical information systems). Isso não se deve, acredito, somente por razões intelectuais ou morais, mas por motivo de expedientes políticos e fiscais. Os GIS têm um apelo suficiente para atrair financiamentos das corporações interessadas em explorar novos mercados e dos governos ansiosos por juntar, ordenar e analisar informações detalhadas. Existe assim uma necessidade por GIS. Mas nós podemos inquirir: "Informações para quem?", "GIS para quem?" e "Geografia para quem?". Sabemos que a geografia pode se tornar capitalizada, com maiores recursos financeiros. Mas a que custo? Não podemos deixar de lado o interesse público em prol dos articulados interesses das instituições estatais e das corporações. Quando desprovido de teoria e de propósito moral, o GIS degenera num pobre exercício de seguir o que está na moda e somente procurar obter algum dinheiro.

Sem dúvida que alguns geógrafos possuem sensibilidade frente a esta questão do engajamento e da relevância social da ciência. Existe mesmo uma alternativa histórica na geografia humana, que foi escrita por figuras como Karl Wittfogel, E.Relus, P.Kropotkin, amalgamados a figuras contemporâneas como William Bunge, P.Gould, D.Harvey, D.Smith e Ron Johnston. Nesta alternativa, com crítica e preocupações sociais, foram desenvolvidas consistentes teorias -- que nunca abandonaram a crença numa possibilidade de emancipação e libertação -- com vistas às necessidades populares, a respeito da justiça social, das realidades políticas e do poder econômico. Esse impulso emancipatório (re)surge constantemente na geografia, particularmente em resposta às mudanças sociais selvagens, particularmente contra a incorporação da ciência geográfica no establishment, e particularmente enquanto resultado de uma necessidade individual de dizer e produzir algo, na geografia, a respeito das questões sociais e políticas. Em 1885, Prior Kropotkin escreveu sobre a necessidade de um ensino da geografia que combatesse o racismo e o nacionalismo; mais de cem anos após, alguns geógrafos políticos [isto é, que produzem geografia política] continuam com essa mesma idéia.

O que é afinal uma geografia humana progressista? É quando essa geografia representa uma atividade emancipatória. O que isso significa? Emancipação sugere uma série de coisas que devemos fazer: combater as guerras, ajudar na luta contra os regimes opressivos, na resistência contra práticas opressivas que destroem a biosfera ou que descriminam pessoas devido à raça, gênero, classe ou idade. Até aí tudo bem. A dificuldade consiste em detalhar uma agenda para a "geografia humana progressista". Não pretendo estabelecer uma lista de fazeres e de coisas interditas. Gostaria, entretanto, de colocar essa questão em debate(...) A reiteração desta demanda [a de recolocar o projeto emancipatório na agenda da geografia] é um produto da desumanização da geografia humana: as pessoas tem sido ignoradas nas determinações estruturais e nas abstrações estatísticas. Como um corretivo, o humanismo e a fenomenologia têm insistido na importância da atividade humana. Mas nós temos também que interrogar "Que pessoas, que atividade humana?" e "Geografia para quem?". Existe uma necessidade de analisar as pessoas excluídas pela e na sociedade. Em especial grupos marginalizados, inclusive mulheres, minorias radicalizadas, jovens, idosos, e grupos física ou mentalmente [ou sexualmente] diferentes. A inclusão desses grupos nos nossos estudos pode colocar novas questões e novos métodos de estudo (o que já ocorreu com o advento da geografia feminista), assim como iluminar dimensões vitais das mudanças econômicas, sociais e políticas. Grupos marginalizados representam não apenas um objeto de estudos, mas um entendimento sobre o como, o onde, o quando e o porque de inúmeros processos de marginalização ou exclusão(...)

A importância de diferentes forças moldando nossa disciplina é muito bem ilustrada na geografia política e em particular na vida e nas obras de Mackinder e Kropotkin. Sir Halford John Mackinder foi uma figura líder no desenvolvimento da geografia no Reino Unido. Nos seus escritos e pronunciamentos ele contribuiu substancialmente para o patriotismo e o imperialismo britânicos. Nascido numa família de classe média, ele tornou-se membro do establishment e da ordem instituída do Estado britânico. Prior Kropotkin, em oposição, nasceu numa família aristocrática da Rússia Czarista, mas tornou-se um anarquista e um crítico da ordem social existente. Na época em que era secretário da Sociedade Geográfica Russa, em 1874, ele foi preso e em 1876 conseguiu escapar e se refugiar na Inglaterra. Ele desenvolveu teorias sobre a ajuda mútua. Esses dois homens praticamente contemporâneos simbolizam a oposição de fins, de engajamento na geografia humana. Um deles, Mackinder, foi um serviçal da classe dominante, como ele próprio afirmou quando escreveu que "ajudava no instrumental do Estado britânico", particularmente na manutenção do império. O outro, Kropotikin, difundiu as idéias de "não-governo", de defesa dos direitos das pessoas, das associações locais, das autonomias locais contra a centralização estatal. Mackinder preocupou-se com o Estado e o império britânicos, enquanto Kropotkin preocupava-se com a descentralização, a cooperação e a emancipação humanas. Enquanto Mackinder dizia que a educação era fundamental para a "classe educada", mas que não devia ser desperdiçada com o "mal educado" proletariado (Mackinder, 1921), Kropotkin tinha um ponto de vista bem diferente:

"O papel da geografia na escola elementar é motivar a criança pelo grande fenômeno
da natureza, despertando o desejo de conhecer e explicar. A geografia deve prestar,
além disso, um serviço ainda mais importante, que é o de nos ensinar(...)
que todos nós somos irmãos qualquer que seja a nossa nacionalidade(...)
A geografia deve contrabalançar a influência hostil dos preconceitos e criar
outros sentimentos mais humanísticos. Ela deve mostrar que cada nacionalidade
trouxe a sua própria contribuição para o desenvolvimento geral da humanidade
e que somente uma pequena parte de cada nação está interessada em manter
as hostilidades e os preconceitos" (Kropotkin, 1885).

A geografia [anglo-saxônica] perdeu o seu rumo quando seguiu Mackinder ao invés de Kropotkin. Na história inicial da geografia política [moderna], a tradição de Mackinder foi a que predominou. A geografia tornou-se numa ajuda para os aparelhos estatais, para os governos enfim. Mas hoje em dia, se queremos auxiliar a comunidade internacional e lutar por uma ordem global de justiça e de paz, então temos que converter a geografia da guerra, aquela baseada na tradição de Mackinder, numa geografia da paz e do combate aos preconceitos, naquela direção apontada por Kropotkin(...)

Os anos recentes testemunharam um renovado interesse pelo meio ambiente e pela ecologia. Mas na geografia [anglo-saxônica] esses temas, desde os anos 70, foram relegados para essa subdisciplina denominada geografia física ou então para as áreas de graduação situadas na "interface" com outras ciências. Essa separação da geografia humana com a questão ambiental, ingênua no passado, tornou-se burlesca e conduziu-nos a uma grande marginalização. Apesar de um certo ceticismo por parte de alguns, que vêem na "onda verde" mais aspectos negativos do que positivos, nos dias atuais existem questões da sociedade e do meio ambiente ao mesmo tempo, numa "geografia humana verde" que considera a tensão entre as necessidades globais e os problemas nacionais mais do que um conflito paroquial. É paradoxal que a geografia humana tenha perdido a sua sensibilidade aos problemas ambientais no exato momento em que eles reemergiram como questão de maior significância. Uma nova consciência dos espaços ambientais e dos lugares ecológicos precisa ser reelaborada em nossa disciplina, e a atenção a esses temas pode estabelecer as bases para um exame mais profundo do que é progresso(...)

Uma verdadeira geografia humana requer a utilização de métodos progressistas. Isso envolve o uso de uma rica variedade de métodos, inclusive mais qualitativos, interpretativos, métodos etnográficos de retratar circunstâncias pessoais e a vida interior de diferentes sociedades e povos. Esses métodos não somente levam a uma maior identificação com as necessidades humanas envolvidas em nosso estudo, mas também conduzem a diferentes maneiras de apresentar nosso trabalho. Nós estamos atualmente restringidos pelo legado histórico da revolução quantitativa, a qual demandou um maior "rigor" e introduziu os métodos estatísticos. Isso foi válido, sem dúvida, mas ao mesmo tempo restringiu o progresso na geografia humana. Como observaram alguns, ocorreu uma defasagem entre a vida das pessoas e as teorias acadêmicas. Nós precisamos de outras maneiras de olhar a realidade, inclusive de escrever sobre ela(...) Nós vivemos numa época interessante. A ordem mundial está em mudança. A ordem bipolar das superpotências entrou em colapso. Questões fundamentais sobre o papel e o contorno do Estado são valorizadas. Os problemas ambientais estão de volta na agenda política. Nossas vidas individuais estão sujeitas a uma mudança cada vez mais acelerada. Enquanto cientistas sociais, temos que produzir alguma ordem nesse caos. Enquanto geógrafos, temos um responsabilidade especial de produzir explicações lógicas a respeito das ambiguidades e polarizações que existem entre povos e ambientes, espaço e lugar, social e espacial, estrutural e pessoal.

(Excertos selecionados de SHORT, John Rennie. New Worlds, New Geographies. New York, Syracuse UUniversity Press, 1998. Seleção e tradução de José William Vesentini).

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