Jesus o Bom Pastor

Jesus o Bom Pastor

03 setembro 2010

CAPITALISMO CRIMINALIZADO



CAPITALISMO CRIMINALIZADO

León Pomer
professor do departamento de história da faculdade de ciências socias da puc-sp


Como julgar uma sociedade, ou, se for preferível, uma forma de relações entre seres humanos? Pode-se fazê-lo a partir de muitos ângulos, mas há um infalível: o tipo de condutas geradas e os valores, ou anti-valores, que lhes são subjacentes. No presente artigo, tratamos de condutas que, sejamos justos, não incluem todos, mas que se apossaram de muitos habitantes deste sistema capitalista hoje planetário.
O capitalismo criminali- zado se move em diferentes espaços, âmbitos e dimensões. Prospera em empresas legalmente constituídas que atuam, presume-se, integralmente à luz do dia, mas que não se privam de burlar as leis que juram acatar; é o capitalismo “respeitável”, que, com certa freqüência, nos avisa dos seus negócios escusos, da lavagem de dinheiro e da assimilação de capitais cuja origem não resistiria a uma investigação séria. Temos o outro capitalismo, o que atua, hoje, no gigantesco âmbito da mais absoluta ilegalidade, já que não é inteiramente clandestino, pois lava, anualmente, segundo dados fornecidos pela ONU para 2002, a “insignificante” quantidade de 750 bilhões de dólares provenientes de atividades criminais, fuga de capitais, evasão de impostos e vários etcéteras com o mesmo nível de pureza e santidade. A lavagem, só a lavagem, indica ainda a ONU, dá comissões e honorários de modestos 150 milhões de dólares anuais para bancos, intermediários financeiros, empresas de fachada, diretivos de trusts e sociedades fiduciárias em paraísos fiscais. Logo veremos que, somando outras atividades, as comissões se elevam a cifras estratosféricas.
As gigantescas fraudes da Enron e da World Com norte-americana, verdadeiros estrondos catastróficos ocorridos no fim de 2001, no então plácido paraíso da bolsa, das finanças e dos negócios, foram cronologicamente precedidas pelo mais formidável escândalo financeiro ocorrido na França, que se deu quando diretores e executivos da então estatal ELF (hoje privatizada), gigante do petróleo, foram descobertos como ladrões em altíssima escala.
Em 2002, se soube, na Espanha, da mais obscura manipulação de dinheiro realizada pelo popular Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (com forte presença no Brasil), que utilizava paraísos fiscais; esta manipulação incluía a constituição, nos Estados Unidos, de suculentos fundos de pensão para benefício clandestino de vinte e dois conselheiros do banco. A última novidade (e continuamos no âmbito das empresas legais) vem, uma vez mais, dos Estados Unidos, onde o setor de fundos de investimentos (7 trilhões de dólares são poupados por 95 milhões de pessoas) se revelou como um eficiente espaço de fraudes gigantescas, em detrimento dos honestos entusiastas do “american way of life”, os quais depositaram suas economias com a louvável intenção de obter algum rendimento sem o habitual esforço físico, ou seja, sem trabalhar.
As atividades de ilegalidade absoluta, por sua vez, estão vinculadas com o capitalismo “respeitável” por infinitos laços, como, por exemplo, por meio das empresas legais que são usadas como fachada. Neste âmbito, mencionaremos as fraudes com medicamentos, negócio que move cerca de 32 bilhões de dólares anuais, e cujas conseqüências são a morte dos desgraçados que procuram remédio para seus males, ignorando ser uma mentira o que estão consumindo. Só na África, morrem, anualmente, 200 mil pessoas que se tratam de malária com produtos farmacêuticos falsificados e portanto inócuos. É óbvio que, para fabricar tamanha quantidade de remédios e comercializá-los por todo o mundo, é necessário um grande complexo industrial e comercial que não tem nenhuma possibilidade de ser invisível ou de se ocultar atrás de um biombo.
Há, no nosso pequeno e maltratado planeta, por volta de 50 paraísos fiscais, dentre os quais as ilhas Cayman, as quais são o quinto centro bancário mais importante do sistema financeiro internacional. Esses paraísos são o refúgio seguro de todas as máfias e governos mafiosos que existem ou existiram. Lembremo-nos do clã Suharto na Indonésia, o matrimônio Marcos nas Filipinas, o duo Fujimori-Montesinos no Peru, o governo Menem na Argentina e as duradouras ditaduras com as quais nós tivemos que nos acostumar em nossa dolorida América Latina: na República Domini- cana, Trujillo foi um representante conspícuo dessa linhagem mafiosa. Agregue-se que, em determinados países, existem zonas “liberadas”, aparentemente fora do controle estatal, para o exercício do narcotráfico e da produção de entorpecentes. Na Tailândia, existe o chamado Triângulo de Ouro, nome sugestivo e muito apropriado; algo parecido ocorre na Colômbia, e também no vale de Békaa, Líbano, ocupado pelo exército sírio e grande produtor de papoula. Temos, pois, máfias no governo e máfias com poderosas conexões em diversas esferas e níveis governamentais. E algo mais: o dinheiro mafioso irriga a economia legal e é lavado por meio dela. A industria têxtil de Bangkok (capital de Tailândia) recebeu vários bilhões de dólares provenientes da heroína comercializada a partir do Triângulo de Ouro. A poderosíssima indústria cinematográfica de Hong Kong obteve diversos fundos do capitalismo criminalizado. Na Itália, ocorreu algo talvez menos curioso do que poderia parecer. Franco Berardi informa que as estatísticas italianas sobre pobreza urbana situavam Palermo, capital da Sicília, como a sétima cidade mais pobre do país1 . Porém, observada de perto por funcionários do governo federal, Palermo gozava de luxo: vendia-se grande quantidades de automóveis de grande porte e de preço ainda maior, e o desemprego não era tal qual o que era anunciado: 400 mil pessoas viviam direta e indiretamente da máfia. Agreguemos que a imagem da máfia siciliana que Coppola transmite ao público em seus magníficos filmes já não corresponde à realidade; os capos e seus subordinados operam empresas de grandes dimensões. No Japão, durante o boom especulativo dos anos 80, os altos dignitários da Yakuza (máfia japonesa) “contribuíram para o desenvolvimento urbano” investindo maciçamente em construções, o que também fizeram seus colegas italianos em seu país natal, além de investir maciçamente na compra de terras agrícolas.
As Nações Unidas se ocuparam da economia criminal2 . No informe produzido, consta o seguinte: “a entrada das organizações criminosas foi facilitada pelos programas de ajuste estrutural que os países endividados foram obrigados a adotar como forma de ter acesso aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional”. Em outras palavras: os programas de liberação da economia, a onda de privatizações das empresas estatais, o brutal castigo inferido à saúde pública, à educação e outros serviços essenciais foram a oportunidade para os grandes escândalos. Uma vez mais: o governo Menem na Argentina foi um exemplo acabado e o resultado foi o colapso da economia e o empobrecimento de mais de 50% dos habitantes. A mesma fonte das Nações Unidas estimava que as cifras geradas, em nível mundial, das organizações criminosas transnacionais eram da ordem de um trilhão de dólares anuais. Para explicitar o que esta cifra significa, as Nações Unidas demonstraram que ela era equivalente ao Produto Nacional Bruto combinado dos países com “receita debilitada” (categorização do Banco Mundial), nos quais vivem três bilhões de habitantes — a metade da população mundial.
O investigador canadense Michel Chossudovsky3 ressalta que a colaboração entre a máfia japonesa, as européias e a americana, às quais se havia agregado, com notável ímpeto, a máfia russa (desenvolvida sob o poder soviético), gerava um lucro superior ao das quinhentas empresas mais importantes do mundo, de acordo com a classificação realizada anualmente pela revista Fortune. Apenas no México, entre 1992 e 1993, segundo declarou o general Basilio Trueba, os narcotraficantes obtiveram uma renda de 26 a 28 bilhões de dólares, números comparáveis às exportações mexicanas legalmente registradas daqueles anos. Diga-se de passagem que o mercado norte-americano de drogas, cliente preferencial dos provedores mexicanos, pagava, em 1995, a soma de 48 bilhões de dólares pela cocaína e heroína consumidas (O Estado de S. Paulo,12-05-1998).
Já mencionamos a economia criminalizada da Rússia; transcrevemos agora informações publicadas pelo diário “Kommerzant” de Moscou (reproduzidas em Courrier International, nº20. Paris, 1994). Em 1994, por volta de mil e trezentas organizações criminais, cujas raízes devem ser procuradas na ex-União Soviética, controlavam 48 mil empresas comerciais, mil e quinhentos estabelecimentos públicos e oitocentos bancos. Esse capitalismo, não tão clandestino nem tão oculto, dominava cerca de 40% da economia da Federação Russa, incluindo a metade do mercado imobiliário de Moscou. Por assim dizer, quase a metade das construções moscovitas estava em sua posse – as melhores, obviamente, eram dos mafiosos.
O capitalismo crimina- lizado conseguiu subordinar uma massa importante de produtores rurais e trabalhadores urbanos, e brindou-os com uma alternativa de vida que a economia legal lhes nega. Os “cocaleros” da Bolívia são um exemplo. Na Ucrânia, o cultivo de ópio substitui o de trigo; na Iugoslávia, a “Santa Corona Unità” fez sua aparição; trata-se de um braço da máfia italiana, que encheu o país de laboratórios para fabricar heroína. O citado trabalho de Chossudovsky fala dos milhares de camponeses marroquinos que produzem heroína, com o seguinte detalhe: a exportação clandestina — ou melhor, não legal — deste produto superava o montante das exportações agrícolas legais do Marrocos. E um dado sobre os Estados Unidos: a cadeia mundial de TV Cable News Network4 colocou o país como um importantíssimo produtor de maconha. A colheita de 1995 do tão apreciado cânhamo foi estimada em 32 bilhões de dólares, obtidos com a participação de um milhão de cultivadores, que plantavam a erva geralmente em jardins e hortas domésticas. Os norte-americanos, sempre em dia com as inovações tecno-científicas, utilizaram, em muitos casos, a engenharia genética para aumentar a produtividade e melhorar o rendimento. Maconha de primeiro mundo.
Mencionamos acima as comissões e outros benefícios que o capitalismo crimina- lizado paga a seus colaboradores, entre os quais se encontram os grandes bancos internacionais. Num passado não muito distante, uma comissão padrão oscilava em torno de 3%. Mas a Transparency International informa que o tráfico de armas paga cerca de 15%, e que o conjunto de comissões oscila anualmente em torno de 4 bilhões e quinhentos milhões de dólares. O senhor Bernard Challe, procurador geral e chefe do serviço central de prevenção contra corrupção da França, alertou que as comissões, além de elevarem os preços, inclusive os dos produtos gerados legalmente, também, como conseqüência, provocavam inflação. Entre os mais ilustres beneficiários destes fabulosos negócios em 1995, figurou um cavalheiro chamado Willi Claes. Ele era o secretario geral da OTAN. No entanto, houve alguém de cargo mais importante nesse esquema do que este simples burocrata internacional. Nos referimos ao marido da anterior rainha da Holanda, príncipe Bernardo, que sempre demonstrou um notável interesse pelo bom andamento dos negócios da Philips, transnacional holandesa cujo nome é sinônimo de lâmpadas. Em seu momento, o Príncipe protagonizou um peque no escândalo que deve ter amargado a existência de sua esposa, que era apenas uma inocente rainha.
Quando um sistema de relações humanas que coloca o interesse pessoal acima de qualquer outra consideração gera máfias e corrupção de tamanho apocalíptico, é conveniente pensar que o problema está na entranha do próprio sistema. E que o problema não é de agora, ainda que agora tenha o tamanho da economia capitalista. Sem ânimo de fazer história, a história do capitalismo é também a história de fraudes gigantescas, mentiras colossais e armadilhas armadas contra a boa fé dos incautos que sempre existiram e ainda existem.

Notas
1 Franco “Berardi, Une Politique de l’Imagination”. Chimères, nº 23. Paris: 1994.
2 La Globalización del Crimen. N.York: 1995.
3 Michel Chossudovsky , “La Corruption Mundialisée”, Manière de Voir, nº 33. Paris: 1997.
4 v. a reportagem publicada no jornal Página 12. Buenos Aires, 18-02-1996.

O Império do Consumo - Eduardo Galeano


A explosão do consumo no mundo atual faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias primas e da força de trabalho humana. O sistema fala em nome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.

Dize-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz, essa que vive se comparando“, lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em Montevidéu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada“, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feito loucos para pagar as prestações“.

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas partes suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a “obesidade mórbida” aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos últimos dezesseis anos, segundo pesquisa recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para assistir televisão. Sentado na frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.

Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêm de longe, contam, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade e constituem um patrimônio coletivo que, de algum modo, está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

A Copa do Mundo de futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste Europeu.

As filas na frente do McDonald´s de Moscou, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloqüência quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamília, tentaram sindicalizar-se em um restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do McDonald´s, em uma pequena cidade próxima a Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde.

Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite. No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundo todo. Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com a palavra. Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos.

Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar em quem?

O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são fruto somente da extrema pobreza. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não trás felicidade; mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro trás algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todas partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.

As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém chegados descobrem é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.

Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano da Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas sentem gosto em juntar-se“. Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? A esperança encontra-se com a realidade? O desejo, encontra-se com o mundo? E as pessoas, encontram-se com as pessoas?Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente encontra-se com as coisas?

O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.

Os terminais de ônibus e as estações de trens, que até pouco tempo atrás eram espaços de encontro entre pessoas, estão se transformando, agora, em espaços de exibição comercial. O shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines, impõe sua presença esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés das marcas internacionais mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua do prócer na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam até o centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada à serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado em potencial.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque, estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.

Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial. Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

* Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio, autor de “As Veias Abertas da América Latina“, livro em que relata o que considera a exploração sofrida pelas nações latino-americanas.
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Modernidade-mundo insustentável


Modernidade-mundo insustentável, por Alberto Teixeira da Silva
13/07/2009
No rastro da razão iluminista, o projeto modernizador do capitalismo exprime uma tendência inexorável: a reprodução dos bens materiais e espirituais da burguesia, comolocus da acumulação para além das fronteiras nacionais, consagrando o mercado mundial como arena privilegiada do processo civilizatório. A modernidade-mundo apresenta nuances progressivas da construção avassaladora do capitalismo na era da globalização. Do Estado-Nação como emblema da nova racionalidade política aos contornos da emergente sociedade global multidimensional, a modernidade é refundada e permamentemente descontruída como base cognitiva do mundo no século XXI.

Dos escombros da primeira modernidade (industrial) e suas promessas de progresso e felicidade, emerge uma modernidade de risco, distribuidora de malefícios e turbulências. Assim Ulrich Beck assinala está passagem logo no primeiro capítulo do seu livro La sociedad del riesgo: “Na modernidade avançada, a produção social de riqueza é sistematicamente acompanhada por uma produção social de riscos. Portanto, os problemas e conflitos de partilha da sociedade de carência são substituídos pelos problemas ou conflitos que surgem da produção, definição e repartição dos riscos produzidos de maneira cientifico- técnica”.

Estamos envoltos numa época histórica marcada por outra modernidade, radicalizada pela revolução nanotcnológica, convergência da parafernália comunicacional, consumismo frenético de bens e expansão ilimitada das forças produtivas. Sob o signo das rápidas transformações e mudanças paradigmáticas está se globalizando um capitalismo multifacetado e imprevisível.Para compreender a intensidade da crise atual de dimensões planetárias, é fundamental refletir o imbróglio dos tempos hodiernos, configurando redemoinhos e dúvidas projetadas pela sociedade global.

A interdependência crescente entre blocos econômicos, sistemas produtivos transnacionais e as diferentes esferas da experiência humana tem sido a marca registrada da sociedade contemporânea, interligando saberes e processos societais. Na década de 1960, o sociólogo canadense Marshall McLuhan cunhou a metáfora ‘aldeia global’ para designar mudanças e percepções derivadas da revolução dos meios de comunicação, sobretudo a partir da televisão, antevendo aquilo que outro sociólogo, o espanhol Manuel Castells iria definir no final do Século 20, a partir das novas tecnologias – o paradigma informacional.

Ondas ininterruptas de inovações e insights movem comportamentos, estilos de vida, padrões de produção e consumo, recriam-se identidades e simbolismos para designar uma era de conexões e interatividades globais, potencializada pela internet e redes (networks) tecidas no ciberespaço. Esses acontecimentos trazem uma sensação crescente e estonteante de transições fundamentais na aurora do terceiro milênio. Como lembra Milton Santos, geógrafo brasileiro cujo reconhecimento ultrapassa linhas territoriais, intelectuais e lingüísticas, “acelerações são momentos culminantes na História, como se abrigassem forças concentradas, explodindo para criar o novo”.

A anatomia dessa admirável modernidade líquida (para usar a expressão emblemática de Zymunt Bauman) reside numa sociedade prenhe de inseguranças, transfigurada por laços efêmeros, sociabilidades fragilizadas e contraditórias, engravidada de riscos cruciais e desafios decisivos. Estamos na encruzilhada de um modelo civilizatório perdulário que nos empurra para o abismo, embora se acredite na luz no fim do túnel. A dinâmica geopolítica mundial hegemonizada por um seleto grupo de países espelha uma arquitetura de governança assimétrica em termos de recursos de poder, estágios de desenvolvimento e perspectivas de futuro, ignorando a construção de pilares éticos globais que garantam a consolidação de valores perenes e efetivamente civilizatórios, como a paz, tolerância, democracia e cooperação para o desenvolvimento duradouro equitativo e justo entre os povos.

Desordens climáticas marcadas por catástrofes socioambientais – fenômenos contrastantes e arrasadores como enchentes, secas, invernos e verões rigorosos e extremos de temperatura, que ora castigam as regiões norte, nordeste e sul do Brasil, assim como outros países em proporções diversas – aliam-se aos dramas cotidianos da violência, pobreza, corrupção, stress urbano, marginalidade e degradação sociopolítica. Estas situações caóticas estão se reproduzindo no espaço global (que inclui o local) pela lógica da racionalidade instrumental, colonizada pela visão econômica do crescimento ilusório e de modelos supostamente progressistas fundados no padrão de bem estar ocidental. Enfim, um cenário que retrata a barbárie contemporânea. A modernidade do século XXI tornou-se perigosa e insustentável num mundo gravitado por desesperanças e incertezas.

Alberto Teixeira da Silva é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (alberts@superig.com.br).


Os jovens e movimentos em torno da Contracultura: um potente motor do consumismo

Enquanto os intelectuais discutiam a mudança dos valores da juventude na segunda metade do século 20, a indústria descobria uma nova classe consumidora

Os anos 60 e 70 marcaram o século 20 de forma definitiva. Foram os anos da descolonização da África e da Ásia, da revolução cultural na China, dos estudantes nas ruas de Pequim, Paris, Cidade do México, Praga, São Francisco e Rio de Janeiro. Tempos em que o apocalipse nuclear era iminente; bastava apertar botões. E da Guerra do Vietnã, da corrida espacial, da chegada do homem à Lua. A mulher começou a reivindicar direitos iguais aos dos homens, e o movimento negro se solidificou. Houve a revolução sexual, os hippies, os fundamentalistas, os revolucionários e as ditaduras militares na América Latina.

Em meio àquele turbilhão, surgiu uma maneira de pensar e se expressar: a contracultura. Foi uma resposta às incertezas da época, que trouxe à tona os poetas beatniks, os festivais de rock, as drogas, os circuitos alternativos, o underground, e nomes como Marshall McLuhan, Herbert Marcuse, Allen Ginsberg, Timothy Leary, William Burroughs e David Bowie. E por que não citar os brasileiros? O escritor José Agrippino de Paula (veja o quadro “O pai da Tropicália”), o cineasta Glauber Rocha, o movimento do Tropicalismo e, claro, o tablóide O Pasquim. Trouxe também discos antológicos, como Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles; livros como On the Road, do escritor estadunidense Jack Kerouac; sem falar na pop art, que revelou Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Keith Haring (veja a matéria“Ironias do consumismo popular”, à pág. 39).

O impacto sobre a juventude da época era tamanho que os empresários da indústria logo viram a oportunidade de grandes negócios. O que, de fato, ia contra os próprios valores da contracultura. Foram redigidos muitos textos, como os de Theodor Adorno (1903-1969), contra a massificação da cultura – muitos deles, desdobramentos do clássico ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), intitulado “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, sobre a impossibilidade de manter a pureza de tais obras diante da sua constante reprodução por meio das técnicas de comunicação que revolucionavam aquela época.

Esse grupo de pensadores criou o termo “indústria cultural”, o modo pelo qual a sociedade capitalista manipula os indivíduos, usando os meios de comunicação de massa.“Era a forma vista pelos seus pensadores de anular as pessoas e a capacidade crítica, formando uma massaúnica que consumiria com mais facilidade poucos produtos culturais, produzidos em larga escala”, comenta o sociólogo Marcelo Tsuadashi.

Esses conceitos ainda se refletem intensamente na criação e no consumo de cultura ao redor do globo. Genericamente falando, a canadense Avril Lavigne pode até não estar no topo das paradas musicais do Japão, mas com certeza influencia alguma cantora adolescente de visual rebelde do arquipélago nipônico a copiá-la e tentar fazer sucesso – assim como o Brasil cria artistas semelhantes, como a baiana Pitty. Cinema, quadrinhos, televisão, teatro, literatura e muitas outras estéticas artísticas se reproduzem aqui e acolá dessa forma, viral e

fugaz, com um bom suporte da mídia globalizada e capitalista. São exceção as artes plásticas, cuja apreciação deriva muito mais do contato pessoal entre obra e espectador (veja o quadro “Dos palácios às sarjetas”).

Alternativos de butique
Os grupos sociais formados por“jovens alternativos” rejeitavam os padrões comportamentais e as visões políticas de seus pares da primeira metade do século passado. Rejeitavam os seus símbolos de status e as mercadorias consumidas pela maioria dos jovens, como o carro do ano, as roupas da moda, os cabelos penteados e as músicas românticas. Defendiam uma ruptura com os valores dos adultos – adotados pelos jovens “caretas” – e lutavam pela existência de uma cultura juvenil própria.

Por outro lado, criaram as bases para a existência da cultura juvenil de consumo, pois os símbolos da rebeldia juvenil – as motocicletas, as roupas coloridas, os cabelos naturalmente compridos, a vida em comunidade e os grupos de rock – foram apropriados e divulgados pelos meios de comunicação. Até os intelectuais tidos como gurus dos jovens, como os filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Herbert Marcuse (1898-1979), tornaram-se best sellers.

No entanto, a transformação da juventude rebelde em consumo era um fenômeno social contraditório – impulsionava o capitalismo, mas divulgava idéias e práticas contrárias à sua existência. A divulgação pela indústria cultural em escala mundial de um grupo como os Beatles incentivou o desenvolvimento da cultura juvenil de consumo. “A Jovem Guarda brasileira, inspiradora do lançamento de produtos para os jovens, foi um exemplo disso, ao mesmo tempo em que servia de estímulo para a contestação social”, afirma o sociólogo Cláudio Coelho.

“É fato o papel dos meios de comunicação para que os movimentos de contestação atingissem uma dimensão mundial”, continua Coelho. “A idéia do poder jovem, do conflito de gerações e da rebeldia juvenil era divulgada amplamente pelos meios de comunicação em escala mundial. Nesses anos, a juventude era retratada como um grupo social à parte, claramente diferenciado dos demais e potencialmente ameaçador.”
Geração beat
Quando Allen Ginsberg, em 1955, encenava nos recitais da Six Gallery, em Nova York, o poema Uivo, inaugurou um novo panorama poético para a literatura da língua inglesa, caracterizado por um estilo fora do literário tradicional. Ginsberg (1926-1997) e sua geração beat foram, além de um fenômeno juvenil determinante para as manifestações de contracultura que surgiriam a partir da década de 60, um marco na literatura contemporânea. Uivo, embora tenha trazido alguns elementos da
poesia de vanguarda, insere-se na estética pós-moderna. Os beats também foram bastante influenciados pelo jazz, principalmente por Charlie Parker e os músicos do bebop.

Outro ícone do movimento foi Jack Kerouac (1922-1969). Seu principal livro, Pé na Estrada (ou On the Road, no título original, de 1957, editado no Brasil pela L&PM), é considerado a bíblia dos hippies e mochileiros.

Seus textos refletem um profundo desejo de livrar-se dos padrões da sociedade e tentar encontrar um sentido mais profundo para a vida. O próprio autor tentou experiências nesse sentido, estudando ensinamentos espirituais budistas, embarcando em numerosas viagens pelo mundo, ou ingerindo cogumelos ao lado de Timothy Leary (1920-1996, psicanalista e guru da contracultura que defendia o uso de substâncias alucinógenas). Porém, nos seus primeiros anos como escritor, os críticos literários não o levaram a sério, passando a ridicularizar o seu trabalho.

Idéias enlatadas
Partindo de pressupostos marxistas, a Escola de Frankfurt – fundada em 1924 por Felix Weil, filho de um grande negociante de grãos de trigo na Argentina – imaginava mudar as estruturas da sociedade moderna capitalista sem violência, sem revolução e sem terrorismo. Um de seus integrantes mais importantes, o filósofo Theodor Adorno, condenou os meios de comunicação de massa da era moderna. Considerava-os alienantes, nocivos e sem nenhum fundamento educacional. Para Adorno e seus colegas, esses meios utilizados pela indústria transformavam seus receptores em meros objetos e vítimas dos capitalistas. Os frankfurtianos fizeram escola em boa parte do mundo. “A corrente terminou ganhando, nos estudos de Comunicação, o status de teoria crítica, porque o fazia sistematicamente”, conta a socióloga Joana Chaves Barbosa.

No livro O Homem Unidimensional: Ideologia da Sociedade Industrial (1964), Herbert Marcuse percebeu que a sociedade atual tinha a capacidade de absorver as classes subalternas e transformá-las em não-contestadoras. Ele via na tecnologia uma forma mais sofisticada de repressão. “Ela continuava existindo mesmo em sociedades democráticas, porque as técnicas de manipulação e controle permitiam um policiamento sobre as mentes das pessoas”, diz. Foram eles também, em especial Max Horkheimer (1895-1973), que criaram o famoso termo “indústria cultural”. Seu objetivo era mostrar que a cultura divulgada é massificadora: ela nivela a arte por baixo e obedece a critérios industriais. Muito parecido com a compreensão que o músico estadunidense Frank Zappa (1940-1993) – outro famoso símbolo da contracultura nos anos 70 – tinha sobre a coisa. Segundo ele, “arte é fazer algo do nada e vendê-lo”.


NEW DEAL - A reconstrução da economia dos EUA



O New Deal entrou para a história como um dos mais importantes
planos econômicos mundiais,capaz de unir teoria e prática e
firmar a liderança globalde um país

Passados os anos duros da Primeira Guerra Mundial, a economia global renasceu fortalecida nos anos 1920. Sobre os escombros da Europa abalada pelos conflitos, emergia uma nação líder: os Estados Unidos, empenhados na produção e naexpansão. Os europeus, beneficiários diretos, adquiriam deles bens e recursos financeiros para recuperar o continente devastado. Os países periféricos, beneficiários indiretos, supriam os americanos com as matérias-primas que moviam as empresas e uma sociedade de consumo em desenvolvimento sem precedentes.
Mas a euforia global estava com os dias contados. Na verdade, viria a ser o caminho para um abismo que estava se delineando. A referência fatal foi a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, que deu início à Grande Depressão. Mas, se o capitalismo viveu a sua mais grave crise, dela surgiu um programa de salvação que as ciências econômicas registram como o primeiro e talvez o mais importante laboratório em que se uniram a teoria e a prática: o New Deal, que recolocou os Estados Unidos no prumo, definitiva e incontestavelmente, como a maior potência mundial, já às portas da Segunda Guerra.

EXPLOSÃO ARTIFICIALO contexto da crise de 1929 deixa clara a inevitabilidade do desastre. A partir de 1925, a expansão desenfreada da produção americana começou a acumular problemas. Para sustentar o parque produtivo, o sistema financeiro multiplicou-se várias vezes, chegando à impressionante cifra de cinco milbancos registrados no Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA). A concessão de financiamentos escorria feito água, com poucas ou quase nenhuma garantia por parte dos tomadores.
Os banqueiros acreditavam que a economia vigorosa era a própria garantia e emprestavam muito além do que seus patrimônios poderiam cobrir. Eles próprios não contavam com as garantias como as que o atual sistema regulatório impõe. Opior foi que, paralelamente, a Europa se recuperava e começava a depender menos dos Estados Unidos. Comprava cada vez menos produtos e protegia-se da invasão de importados, com medidas protecionistas.
Aos poucos, foi se consumando uma crise de superprodução. A economia, de uma convivência conveniente com a inflação, pois a procura por bens incentivava a escalada dos preços, passou a sofrer com a queda abrupta dos preços. Daí para a formação de estoques, paralisação da produção e desempregofoi um passo tão rápido quanto o estouro da "quinta-feira negra" em 25 de outubro de 1929.

A influente Bolsa de Nova York, para onde as empresas vinham acorrendo para abrir capital, vendendo parte de suas ações também para captação de recursos visando ao crescimento, quebrou em poucas horas de pregão. As ações das empresas caíram vertiginosamente e veio o crash.
As falências, que começaram nas indústrias e chegaram aos bancos, multiplicaram-se em todo o sistema econômico. O mundo foi junto.
Na expressão de Galbraith, a "patentemente insana" explosão econômica artificial e descontrolada financiava ainda luxos de uma sociedade afluente e empreendimentos factóides, como a especulação imobiliária no estado da Flórida. A euforia deu lugar ao colapso, com conseqüências sociais imediatas. Entre elas, um número sem precedentes de suicídios, hordas de desempregados vagando pelas ruas e aumento da criminalidade.
VOLTAM OS EMPREGOSNos três anos seguintes ao ponto culminante da crise, o imobilismo ainda era total. Tamanha era a desordem, que o presidente Hoover pouco fez. Surgiu Roosevelt como candidato a presidente, em 1932, propondo um "novo acordo" (new deal) à sociedade expressão cunhada pelo juiz Samuel Rosenman. Eleito Roosevelt, esse novo acordo revelou-se, a partir de 1933, uma metáfora para a ruptura com o sistema vigente. Ele propunha o fechamento temporário dos bancos que sobreviveram; a requisição compulsória dos estoques em ouro para recompor as finanças públicas; a desvalorização da moeda via inflação moderada, a fim de elevar os preços dos produtos agrícolas e permitir o pagamento das dívidas dos fazendeiros; a emissão de papel-moeda (dólares) e o abandono do padrão-ouro (as pessoas podiam resgatar em metal o equivalente em dólares), que viriam a ajudar a financiar o seguro-desemprego.
Entre as medidas emergenciais que mais repercutiram estavamas obras públicas. O governo bancou de norte a sul e coast tocoast diversos projetos de infraestrutura. Com investimentos públicos, construíram-se rodovias, ferrovias, usinas, sistemas de saneamento, escolas, portos e o que mais puder se pensar, em cifras astronômicas, nunca mensuradas precisamente.

Com isso, dos cerca de 14 milhões de desempregados americanos às vésperas do New Deal, quase a metade arranjou colocação nas frentes de trabalho. A proposta era atacar o desemprego para distribuir renda, o que proporcionaria certa absorção da produção e serviços excedentes, não consumidos durante os anos mais agudos da crise.
É certo que a Grande Depressão ainda perdurou mais alguns anos - oficialmente fala-se em 10 anos -, e o desemprego só foi mesmo aplacado com os esforços da indústria bélica às portas da Segunda Guerra Mundial. Mas é certo, também, que as ações da primeira fase do plano de reconstrução fizeram o gigante americano voltar a andar, incentivando o governo a estender mais as suas rédeas sobre a economia, já na segunda fase (1935-1938), com a autoridade federal determinando os rumos em todos os campos.
Franklin Delano Roosevelt: iniciativas de criação de frentes de trabalho do presidente norte-americano reduziram pela metade o número de desempregados, que chegava a 14 milhões no auge da crise

Entre os pontos mais significativos desse segundo período, está a ênfase nas leis trabalhistas. Surgiram, então, a carga horária semanal, o sistema previdenciário, o descanso regulamentar e, no caso dos negros, a equiparação salarial. Com a confiança da nação resgatada, Roosevelt foi reeleito quatro vezes. A última em 1944, fato sem precedentes na história americana. A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, de Keynes, lançado em 1936, fonte da qual o New Deal bebeu, tornou-se a bíblia dos economistas. Ainda hoje é vista por muitos como um modelo a ser seguido.

Giovanni Lorenzon é jornalista e analista econômico.

AS RÉDEAS NAS MÃOS
DO GOVERNO

Os pressupostos teóricos do inglês John Maynard Keynes, descritos em seu livro mais famoso, impuseram um novo pensamento para a economia de livre mercado. Sobrevivia até então o espírito do laissez-faire, laissez-passer (em francês, "deixem fazer, deixem passar"), argumento central de A Riqueza das Nações, de Adam Smith. O pensador do século XVIII defendia que o bem-estar do indivíduo só podia ser alcançado sem ingerência e amarras oficiais.
Apesar da importância repentina de Keynes, os fundamentos de sua teoria só foram mais bem absorvidos com a ação do americano Paul Samuelson, que em Economics: an Introduction Analysis, de 1938, traduziu melhor a teoria de Keynes para os estudantes e fez com que ela fosse mais bem compreendida pelos líderes americanos.
Para os críticos desse modelo de política econômica, liderados pelos liberais da Escola de Chicago, cujo expoente é Milton Friedman, Keynes foi o precursor dosprogramas intervencionistas adotados em muitos países ao longo das décadas seguintes. Esses programas seriam o pecado original dos déficits públicos, já que estimulam os investimentos públicos sem receita suficiente no orçamento, obrigando os governos a lançar títulos para captar recursos, e perpetuar a inflação.
No Brasil, o capítulo keynesiano mais reconhecido foi o do período dos governos militares, quando a ditadura dava liquidez à economia por meio de obras públicas. Os governos seguintes, preocupados em financiar o rombo, sempre tentaram adotar um híbrido entre os ideais de Keynes e os dos liberais.


Natal, da igreja ao shopping center

edição 50 - Dezembro 2007

O marketing em torno da festa do dia 25 de dezembro, apoiado em elementos do imaginário religioso, ajuda-nos aentender como o consumo se revela filho legítimo do monoteísmo
por Silvio Mieli

© LOSEVSKY PAVEL/SHUTTERSTOCK


Shopping: o templo do Natal moderno

O cenário do anúncio impresso,lançado às vésperas do Natal de 2005, reproduzia a atmosfera de um quadro renascentista. Uma cliente se aproxima do caixa para pagar suas compras na loja de decoração. Olhar entre virginal e maternal, vestes angelicais, a mão direita apoiada sobre as caixas brancas e a esquerda sutilmente inclinada, segurando um cartão de crédito. Por trás dos seus cabelos dourados, uma baixela de prata pendurada na prateleira da loja conferia à consumidora uma auréola de “madona rafaelita”. “Fazer o bem é mais fácil do que você imagina”, dizia o slogan do cartão de solidariedade do banco.

A peça publicitária parecia ter sido inspirada no tríptico Virtudes teologais (fé, esperança e caridade), pintado por Raffaello Sanzio em 1507. Só que, na versão original, a santa recosta a mão esquerda no peito e a outra segura o cálice sagrado. Mas cada época tem o Raffaello que merece. E reciclando o estoque de imagens universais para fins instrumentais, o
marketing pré-natalino nos ajuda a entender como o consumo é filho legítimo do monoteísmo. Já no Velho Testamento, no capítulo 1 do livro do Gênese, versículo 26, Deus franqueou ao homem o domínio “sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. Sabemos no que deu este apelo explícito ao consumo desmesurado da própria natureza.

No próprio feriado de “Ação de Graças”, comemorado na quarta quinta-feira de novembro, depois de comer o peru em família, uma procissão de americanos afl ui às compras na maior liquidação do planeta. O agradecimento a Deus pela boa colheita de outono, que está na origem da comemoração instituída em 1621, converte-se na celebração do consumo sem trégua, aquecendo o comércio às vésperas do Natal.

Para reagir ao marketing que mistura táticas religiosas com as do universo militar, surgiu a campanha mundial Buy nothing day (um dia sem compras), encabeçada pela canadense Media Foundation, que produz a revista antipublicitária Adbusters. Mas além
da campanha, o ritual fundamentalista do consumo também passou a ser questionado a partir das performances do reverendo Billy. Fundador da Igreja do Anticonsumo, Billy, ao estilo dos “sacerdotes” evangélicomidiáticos, invade lojas aos berros de “No shopping” (não compre). Sua pregação, acompanhada de denúncias contra a exploração de mão-de-obra infantil na fabricação de certos produtos, inspirou grupos de ativistas europeus, que passaram a organizar manifestações no interior das lojas de grandes marcas. Na versão européia, ativistas quedam-se prostrados diante, por exemplo, de um boné da Nike, entoando orações e mantras laudatórios ao venerado produto.

Silvio Mieli é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Jornalística da PUCSP, onde desenvolve atividades ligadas ao midiativismo, à análise dos sistemas audiovisuais e à crítica à mídia

Rivista História Viva

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