Causou perplexidade nos meios geográficos a publicação, em 1976, do livro Introdução à Geografia , de Nelson Werneck Sodré. O autor não era visto como um estudioso da Geografia , embora fosse conhecido e até admirado – tendo-se em vista que vivíamos em plena ditadura militar – por uma expressiva parcela da comunidade geográfica brasileira como um ex-militar, historiador e principalmente marxista . Apesar de ignorado pela academia , o livro foi bem aceito pela parcela mais crítica dos estudantes de Geografia (de graduação e de pós-graduação ) e dos professores do Ensino fundamental e médio , que viram nele mais um aliado na denúncia do tradicionalismo e principalmente do comprometimento da ciência geográfica dominante na época com a mentalidade tecnocrática e com a denegação dos problemas sociais e ambientais, tidos como “não geográficos ”.
É exatamente a conjuntura dessa década , tanto no exterior (a Guerra Fria ) como principalmente no Brasil, que ajuda a explicar esse repentino interesse de Werneck Sodré pela Geografia . O autor via na ciência antes de tudo uma forma de militância, e escrever sobre a Geografia naquele momento , a nosso ver , significou para ele duas frentes de luta : por um lado , a possibilidade de denunciar um certo viés tecnicista e até mesmo oportunista , no fundo um arremedo do que ocorria nos Estados Unidos, que predominava em boa parte da Geografia brasileira ; por outro , sem dúvida que mais importante para o autor , esse foi um modo que encontrou para criticar , mesmo que de forma disfarçada ou indireta , o pensamento tecnocrático do governo federal e em especial a Geopolítica dos militares .
Cabe lembrar que de 1974 a 1979, o general Ernesto Geisel era o Presidente da República, assessorado de forma íntima pelo estrategista Golbery de Couto e Silva, famoso por suas publicações de Geopolítica. Com essa obra, usando a Geografia como pretexto, Werneck Sodré engendrou uma crítica dissimulada à Geopolítica de Golbery, que tanta influência exerceu no governo Castelo Branco e depois no governo Geisel (e mais tarde também no governo Figueiredo). Uma crítica indireta, através da Geografia, porque a publicação de um livro que desancasse aquele pensamento geopolítico brasileiro, em 1976, além do mais escrito por um marxista (e ex-militar!), provavelmente seria censurada e implicaria até mesmo no risco de prisão e tortura.
Werneck Sodré deixa de lado a Geografia Física , vista por ele como plena de “inovações técnicas , mas anárquica” (p.9), principalmente porque ela não teria incorporado a Dialética e dessa forma , a seu ver , “não seria científica” (sic!). Ele se concentra na Geografia Humana , em especial no que chama de “falsidades ideológicas” (pp.119-29), fazendo breve um percurso pela História da Geografia , pelo “determinismo geográfico ” e principalmente pela Geopolítica . No capítulo sobre “a formação de Geografia ” (pp.13-36), Sodré advoga a tese de que a essa disciplina teria surgido como – e sempre teria sido – uma espécie de auxiliar da História . Mas agora [isto é, nos anos 1960 e 70], argumenta , ela estaria fazendo o oposto , estaria ajudando a “retardar ou impedir o desenvolvimento da história ” (p.30). E no capítulo sobre o “determinismo geográfico ” (pp.37-53), o autor cita uma série de afirmativas , todas descontextualizadas, de autores que teriam sido deterministas : Bodin, Montesquieu, Tocqueville, Michelet, Buckle, Silvio Romero e, logicamente, Ratzel. Aqui , ele se fundamentou principalmente em Plékhanov (“As questões fundamentais do Marxismo ”) e em Lucien Febvre , um amigo e ex-aluno de Vidal de La Blache e que , na realidade , foi o criador desse mito sobre a existência de uma “escola geográfica determinista alemã ou ratzeliana” em contraponto à “escola possibilista francesa ou lablacheana”[1].
No capítulo sobre “A Geopolítica ” (pp.54-71), o mais importante do livro , Werneck Sodré é impiedoso : “Se o determinismo é um dos traços mais característicos da Geografia da época do Imperialismo , a Geopolítica assinala a deformação levada à monstruosidade - é a Geografia do Fascismo . Desde que Ratzel lançara as bases do determinismo , abre-se à Geografia dois caminhos : o científico e o ideológico. A Geopolítica representa a culminância da trilha ideológica.” (p.54)).
Reproduzindo trechos de alguns autores geopolíticos clássicos - Rudolf Kjellén, Otto Maul, Arthur Dix, Halford MacKinder e Karl Haushofer, todos eles , principalmente MacKinder, amplamente utilizados pela Geopolítica brasileira e por Golbery do Couto e Silva (que , no entanto , apesar de ser o alvo visado, nunca é citado) -, Sodré procura mostrar que eles seriam um subproduto do “determinismo geográfico ” de Ratzel, assinalando que : “É como a definiu Pierre George: ‘A pior das caricaturas da Geografia aplicada na primeira metade do século XX foi a Geopolítica , justificando autoritariamente qualquer reivindicação territorial , qualquer pilhagem , por pseudo-argumentos científicos ’.” (p.70).
Nesse seguinte trecho da obra , podemos perceber qual é de fato o alvo que o autor quer atingir com essa apreciação da Geopolítica : “A Geopolítica , que passara por um transitório eclipse com a derrota nazi-fascista, ganhou corpo novamente com a chamada ‘Guerra Fria ’, definindo claramente seu conteúdo ideológico. Pela sua natureza e pelos seus propósitos , deveria acolher-se particularmente nos Estados Unidos e, em proporções mais reduzidas, nos países dependentes dos Estados Unidos. Trata-se, nesta nova fantasia carnavalesca , de estabelecer a naturalidade e até a necessidade da hegemonia mundial de uma grande potência , capaz de dar segurança aos povos seus tutelados e servidores , e de assegurar neles a vigência ou a continuidade de regimes políticos autoritários , apresentados como preservadores da ‘civilização ocidental e cristã’(...) Trata-se, como se vê , de pessoas com as melhores intenções , tal como os atuais futurólogos, profetas de catástrofes e juízes de países que condenam à servidão perpétua , gordos , pretensiosos e ignorantes .” (p.66-7).
Nessa longa citação podemos perceber a intenção ao autor em criticar dois autores importantes na época : o general Golbery do Couto e Silva e o futurólogo Herman Khan, embora não cite diretamente nenhum deles. Golbery, cujo livro Geopolítica do Brasil (Editora José Olympio, 1967) era uma referência sobre o assunto no Brasil (e uma das obras máximas dos intelectuais orgânicos do regime militar ), entre outras coisas advogava que o Brasil deveria se alinhar à “civilização Ocidental e Cristã”, liderado pelos Estados Unidos, contra o “mundo comunista ” capitaneado pela ex-União Soviética . E Herman Kahn, que se vangloriava publicamente pelo seu elevado QI (145, como ele dizia) e pela sua obesidade (165 kg ), estava muito em voga na época por ter publicado um estudo sobre O mundo em 2000 (em co-autoria com A.J.Wiener, Edições Melhoramentos, 1967), onde entre outras previsões especulava que os países desenvolvidos como os Estados Unidos iriam crescer até o final do século em média mais do que os países “em desenvolvimento ”, como o Brasil, a Índia ou a China[2], além do instituto Hudson, para o qual Kahn trabalhava (ou melhor , dirigia), ter elaborado mirabolantes planos para a Amazônia, que evidentemente ficaram somente no papel embora tenham irritado profundamente a intelectualidade brasileira da época , tanto a de esquerda como a de direita .
No último capítulo do livro , “as falsidades ideológicas” (pp.119-29), Werneck Sodré polemiza com algumas ideologias que seriam constantemente reproduzidas pela Geografia : o racismo , o determinismo novamente (desta vez en passant) e principalmente a “explosão demográfica”. Ao repudiar o racismo , Sodré cita frases ou idéias de dois intelectuais brasileiros – estranhamente , nenhum deles geógrafo – que teriam propagado ideologias racistas : Euclides da Cunha e Paulo Prado . O principal argumento que ele usa para envolver a Geografia nessa trama é o seguinte : “Ora , se a Geografia não impugnou tal falsidade - ou por acolhê-la ou por colocar-se em omissão - está contribuindo para endossá-la. E isso em detrimento , evidentemente , dos interesses populares ” (p.121). Com isso constatamos mais uma vez que na verdade Sodré escreveu um livro de polêmica ideológica, contra algumas idéias bem vistas pelo regime militar , e usou a Geografia no título de sua obra mais como uma forma de evitar uma possível censura , como uma espécie de dissimulação na capa do livro de sua real intenção, que na época era vista como subversiva. Ipso facto, este não é um livro sobre a Geografia, ou de debates dentro da Geografia, como o título poderia sugerir. É, antes de tudo, um livro de polêmica ideológica a respeito de alguns temas constantemente abordados pela imprensa na época.
Ao abordar a “explosão demográfica”, tema em moda naqueles anos 1960 e 70, Sodré afirma que : “A mais recente das falsidades ideológicas que utilizam a Geografia como veículo está relacionada ao problema da população (...) No arsenal ideológico, para explicar e justificar o atraso em que eram mantidas vastas extensões do globo - suas populações - pela expansão colonial e pelo Imperialismo , foram mobilizadas sucessiva ou simultaneamente várias teses : tais populações eram racialmente inferiores (...); eram condenadas pelo clima das regiões que habitavam; eram vítimas de ‘doenças tropicais ’. A última no tempo , que tratamos agora , está formulada mais ou menos assim : tais populações são atrasadas e miseráveis porque são numerosas; daí a solução fácil : controlar a natalidade , visando reduzir o número de indivíduos (...) A miséria não resultaria da exploração - a imperialista como a de classe - mas da ‘explosão demográfica’.” (pp.122-3).
(José William Vesentini)
* Resenha feita a pedido do Prof. Dr. Marcos Antonio da Silva, do Depto. de História da FFLCH-USP, para um Dicionário da obra de N. W. Sodré.
[1] Para um aprofundamento nessa temática de como os franceses no início do século XX criaram o mito de uma “escola determinista ” capitaneada por Ratzel veja-se o nosso ensaio Controvérsias Geográficas. Epistemologia e Política , disponível na revista Confins on line: http://confins .revues.org/document1162.html
[2] Previsão essa totalmente equivocada, como podemos constatar hoje , nesta primeira década do século XXI. É interessante notar que o nacionalismo do ex-general impediu que ele adotasse a atitude de outros marxistas da época , principalmente alguns teóricos da teoria da dependência , que usaram essas previsões de Khan e outras semelhantes , concordando implicitamente com elas , para propagar a idéia de que somente rompendo com o capitalismo – isto é, implantando o socialismo e a economia planificada – é que os países subdesenvolvidos , como o Brasil, conheceriam um real crescimento econômico . (Um outro disparate desmentido pelo tempo histórico , pela crise terminal da planificação da economia no final dos anos 1980 e pelo acelerado crescimento da China, da Índia , dos “tigres asiáticos ” e de outras economias que no final dos anos 1960 eram tidas como subdesenvolvidas e estagnadas).
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